Jack, Anthony Abraham. The Privileged Poor – How Elite Colleges Are Failing Disadvantaged Students. Harvard University Press, 2019. 288 pp.
resenha por Anna Carolina Venturini
Em seu primeiro livro (ainda não publicado no Brasil), The Privileged Poor [Os pobres privilegiados], o sociólogo e professor da Faculdade de Educação da Universidade de Harvard – Anthony A. Jack –busca compreender o que acontece com estudantes pobres após seu ingresso em universidades de elite. Logo na introdução, Jack afirma que, desde o final dos anos 1990, as universidades mais renomadas dos Estados Unidos estão criando políticas de assistência financeira e estão cada vez mais abertas para estudantes de baixa renda, mas questiona “quão abertas elas estão” (p. 8). Assim, seu objetivo é analisar a experiência de alunos pobres nessas universidades e investigar se tais instituições estão prontas para, como pregam, receber o corpo estudantil diversificado.
Jack começa o livro contando que, apesar de ser um jovem negro e pobre, ao chegar ao Amherst College, em Massachusetts, ele já sabia lidar com pessoas ricas e transitar naquele ambiente, pois tivera a oportunidade de concluir o ensino médio em uma escola de elite – o Gulliver Preparatory, em Miami – por meio de uma bolsa de estudos. Essa experiência, revela, foi fundamental para que ele percebesse logo cedo que havia uma diferença entre os estudantes pobres e os estudantes ricos que ingressavam em uma universidade de elite.
O autor critica os estudos sobre ensino superior que tratam os alunos pobres como categoria homogênea e procura, ao longo do livro, demonstrar que a trajetória dos alunos no ensino médio influencia seu senso de pertencimento e toda a sua dinâmica universitária. A principal pergunta que Jack busca responder é o que significa ser um estudante pobre em uma universidade rica. Para dar conta da questão, Jack realizou uma etnografia de 2 anos em uma universidade de elite na região Nordeste dos EUA identificada com o codinome “Renowned”, fez entrevistas com 103 alunos distribuídos em termos de classe, raça e gênero, bem como fez conversas informais com estudantes, professores e funcionários.
Para verificar se havia diferenças entre as trajetórias dos estudantes, Jack os dividiu em três categorias. Os pobres privilegiados (“privileged poor”) são os estudantes de baixa renda que, com bolsas de estudos, puderam fazer o ensino médio em escolas privadas e de elite e que foram previamente apresentados ao ambiente que encontrariam na universidade. Já os duplamente desfavorecidos (“doubly disadvantaged”) são estudantes pobres que estudaram em escolas públicas e não têm qualquer familiaridade com esse novo mundo que encontrarão no campus. E os de renda superior (“upper income”) são alunos de alta renda que estudaram em escolas de elite.
No primeiro capítulo, Jack mostra como o processo de transição para a universidade é diferente para cada um desses grupos. Os duplamente desfavorecidos relatam situações de choque cultural e apontam que estar matriculado não significa se sentir parte do ambiente. O senso de pertencimento – aspecto muitas vezes subestimado por estudiosos do ensino superior – se mostra fundamental na experiência universitária e no aproveitamento das oportunidades e recursos que a instituição oferece. Já os pobres privilegiados relatam que o choque cultural não aconteceu no ingresso à universidade, mas alguns anos antes: na chegada às escolas de elite para realizar o ensino médio. Os alunos de alta renda, por sua vez, já estavam acostumados àquele ambiente por terem estudados em escolas privadas, porque alguns de seus familiares se graduaram naquela ou em outras universidades renomadas e por toda a exposição social e cultural que tiveram ao longo de sua formação.
O segundo capítulo aborda o relacionamento com professores e o acesso a recursos institucionais. Os relatos mostram que os alunos duplamente desfavorecidos têm muita dificuldade de se relacionar com professores e outras figuras de autoridade, o que afeta suas trajetórias de diversas maneiras, podendo, inclusive, interferir em oportunidades profissionais, dada a ausência de conexões e integração a redes. Os alunos de alta renda e os pobres privilegiados, por sua vez, se relacionam de forma estratégica com pessoas influentes da universidade, o que lhes proporciona apoio e conexões importantes durante a graduação e após a conclusão do curso, sobretudo por meio de estágios e cartas de recomendação. O que diferencia os dois grupos é que para os pobres privilegiados essa foi uma capacidade adquirida ao longo do ensino médio e não uma facilidade inata ou herdada (p. 114). Jack critica o fato de as universidades acharem que todos os estudantes chegam preparados para esse ambiente, conhecem os códigos culturais e sabem como o engajamento com professores e funcionários irá influenciar suas oportunidades acadêmicas e profissionais futuras.
O capítulo seguinte mostra como algumas políticas institucionais acabam exacerbando as desigualdades entre estudantes pobres e ricos. Jack revela, por exemplo, de que forma o fechamento dos restaurantes universitários afeta ambos os grupos de estudantes pobres. Ele traz relatos fortes e marcantes de alunos passando fome durante o spring break [recesso de primavera]. Os casos mostram como políticas que foram criadas com o objetivo de ajudar financeiramente os estudantes, na prática, acabaram por reforçar a sensação de que os estudantes pobres não pertencem àquele ambiente.
O trabalho de Jack propõe um debate fundamental sobre o ensino superior, que é a diferença entre acesso, inclusão e equidade, de modo que suas reflexões são aplicáveis a qualquer universidade, não apenas às instituições de elite estadunidenses. O livro mostra que não basta que as universidades criem políticas para aumentar o acesso de estudantes de baixa renda e outros grupos minoritários. Há um currículo oculto e não escrito de regras, termos e expressões que as pessoas que já estão dentro desses espaços acadêmicos tomam como certo, mas que é desconhecido por pessoas de fora e acaba gerando desigualdades.
The Privileged Poor revela claramente que, ainda que dentro da mesma universidade, os estudantes pobres e ricos não têm as mesmas oportunidades. A constatação dessas desigualdades ao longo dos cursos é fundamental para os debates sobre as políticas de acesso à pós-graduação, meu principal objeto de estudo atualmente. Nas entrevistas que realizei com programas de pós-graduação para minha tese de doutorado (Venturini, 2019), um dos argumentos mais comuns contra as ações afirmativas nesse nível educacional era o de que, após o ingresso na universidade pública, todos têm as mesmas oportunidades educacionais. O estudo de Jack reforça a hipótese de que esse argumento é falacioso, inclusive nas instituições de elite estadunidenses que possuem muito mais recursos. Além disso, no Brasil, a pesquisa de Leonardo Barbosa e Silva (2017, p. 98) sobre a distribuição de oportunidades acadêmicas ofertadas aos discentes da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) indica que “uma vez dentro das IFES [Instituições Federais de Ensino Superior], negros e negras não acessam com equidade oportunidades acadêmicas fundamentais para uma formação universitária com qualidade”, visto que costumam participar das atividades de menor status e reconhecimento.
Portanto, é essencial verificar as dificuldades enfrentadas por esses estudantes dentro das universidades e criar políticas institucionais para eles possam se desenvolver academicamente e usufruir de todas as oportunidades que as universidades oferecem. Como afirma Jack, é importante entender como a pobreza e a desigualdade moldam a experiência universitária dos estudantes e como algumas políticas institucionais amplificam as diferenças entre os alunos diariamente.
Jack é muito bem-sucedido em seu objetivo de mostrar que os alunos pobres não são um grupo homogêneo e que suas experiências em uma universidade de elite são diferentes e marcadas por aspectos prévios ao ingresso. No entanto, dois fatores poderiam ser abordados em maior profundidade, ainda que apareçam em alguns capítulos: os papéis que a raça e o gênero dos alunos exercem nessas experiências desiguais. Os estudos da área de interseccionalidade já apontam como diferentes formas de opressão e discriminação se combinam, e é importantíssimo trazer esse olhar para dentro do ambiente universitário.
Anna Carolina Venturini é pós-doutoranda vinculada ao Programa Internacional e Interdisciplinar de Pós-Doutorado (IPP) e ao Afro – Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial, ambos do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). É doutora em ciência política pelo IESP-UERJ e mestre em direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP. Pesquisadora na área de ações afirmativas raciais e de gênero com enfoque em mudança institucional.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4246058679776328
Referências citadas:
BARBOSA E SILVA, Leonardo. Racismo institucional e as oportunidades acadêmicas nas IFES. Revista Brasileira de Ensino Superior, Passo Fundo, v. 3, n. 3, p. 80-99, dez. 2017. ISSN 2447-3944. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/REBES/article/view/2028.
VENTURINI, Anna Carolina. Ação afirmativa na pós-graduação: os desafios da expansão de uma política de inclusão. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 318 pp, 2019. Disponível em: http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=16403&fbclid=IwAR3kOlT7uM5A4PquCZ-lM9XMhj3bFh2-CVsOb1kQ0JJ3Y6sN0E0fpAQ5Lno
Mais informações sobre o livro: https://www.hup.harvard.edu/catalog.php?isbn=9780674976894