Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira, o Chico de Oliveira (1933-2019)
Nadya Araujo Guimarães
Eram os idos de outubro de 1972, quando o Cebrap lançava o segundo número da sua revista, à época denominada Estudos Cebrap. Como carro-chefe, oferecia ao leitor um longo ensaio de quase oitenta páginas que, fossem os dias atuais, seria certamente recusado por dez entre dez editores. Um artigo tão cônscio da sua ousadia que, já em sua frase de abertura, deixava claro o alcance almejado:
A perspectiva deste trabalho é a de contribuir para a revisão do modo de pensar a economia brasileira, na etapa em que a industrialização passa a ser o setor-chave para a dinâmica do sistema, isto é, para efeitos práticos, após a Revolução de 1930. (p. 5, grifos meus)
Maior premonição impossível. De fato, o texto “A economia brasileira: crítica à razão dualista”, de Francisco de Oliveira, cairia como uma bomba no debate acadêmico brasileiro, imprimindo-lhe um novo enquadramento. Era um agudo acerto de contas com o pensamento cepalino, cuja razão dualista era ali meticulosamente desmontada.
Entretanto, o autor sustentava a sua “dialética negativa” (como posteriormente viria a qualificar seu modo de pensar) num delicado equilíbrio que alinhava a crítica perspicaz e demolidora à delicadeza e ao respeito no trato com os que reconhecia como seus “interlocutores válidos” (para tomar de empréstimo suas palavras). Assim era Chico Oliveira. Por isso mesmo, abre seu texto com duas preliminares, que deixam claro ao leitor o lugar a partir do qual a reflexão se gestara. Na sua primeira nota de rodapé, antes mesmo de iniciar-se o argumento, cuidou de identificar o entorno e as indagações a que respondia. Ao fazê-lo, deixava entrever o estilo de trabalho intelectual que animava o seu grupo de referência:
Este ensaio foi escrito como uma tentativa de resposta às indagações de caráter interdisciplinar que se formulam ao Cebrap, acerca do processo de expansão socioeconômica do capitalismo no Brasil. Beneficia-se, dessa maneira, do peculiar clima de discussão intelectual que é apanágio do Cebrap, a cujo corpo de pesquisadores pertence o autor. O autor agradece as críticas e sugestões dos seus colegas […]. (p. 4, grifos meus)
Na primeira seção do ensaio, intitulada “Uma breve colocação do problema”, Chico planta uma segunda preliminar, dando mostras do respeito que conferia àqueles cujo pensamento iria desconstruir; com alguns deles partilhara experiências cruciais em sua própria trajetória pessoal, como foi o caso de Celso Furtado.
O esforço reinterpretativo que se tenta neste trabalho suporta-se teórica e metodologicamente em terreno completamente oposto ao do dual-estruturalismo; neste ponto, bom é que se esclareça aonde se quer chegar: não se trata, em absoluto, de negar o imenso aporte de conhecimentos bebido diretamente ou inspirado no “modelo Cepal”, mas exatamente de reconhecer nele o único interlocutor válido, que ao longo dos últimos decênios contribuiu para o debate e a criação intelectual sobre a economia e a sociedade brasileira e a latino-americana. Mesmo porque a oposição ao “modelo Cepal”, durante o período assinalado, não se fez nem se deu em nome de uma postura teórica mais adequada. […] Assim,ao tentar-se uma “crítica à razão dualista”, reconhece-se a impossibilidade de uma crítica semelhante aos “sem-razão”. (p. 7, grifos meus)
Por certo não é aqui o lugar para resenhar as ideias desse ensaio seminal, e muito menos a sua intensa reverberação na cena brasileira. O fato é que, através dele, estabelecia-se, na interpretação desse período, um ponto de não retorno com respeito ao economicismo, num texto que era um libelo pela importância de pensar politicamente a economia, retendo o jogo de forças que lhe conferia complexidade, com o que revigorou o pensamento marxista produzido no Brasil. Quarenta anos depois de publicado pela Estudos Cebrap, diria Chico, em entrevista a Marcelo Ridenti e Flavio Mendes, quando instado a falar da sua obra:
Eu tenho um texto importante, dos anos 1970, que é “Crítica à razão dualista”. Os outros não tiveram tanta importância.
Os elos com a Estudos Cebrap foram sendo cultivados, e podemos reencontrar Chico recorrentemente ao longo dos anos de vida da revista. Seus artigos bem refletiam quão diversas eram as suas inquietudes intelectuais, indo desde uma reflexão sobre a construção de estruturas alienantes a partir da leitura do Pantaleon y las visitadoras, de Vargas Llosa (Estudos Cebrap, n. 8), até uma provocativa incursão no debate demográfico, em que se debruça sobre o tema da reprodução dos homens sob o capital (Estudos Cebrap, n. 16), passando por encarar as tensões que marcavam, à época, a questão da universidade brasileira (Estudos Cebrap, n. 27). No entremeio, textos mais alinhados com a sua agenda habitual, seja na forma de resenhas (como a do trabalho de Levinson sobre capital, inflação e empresas multinacionais, na Estudos Cebrap, n. 4), ou de artigos prenhes de reflexões de natureza socioeconômica, como acerca da “terciarização” e seus horizontes na economia paulistana (Estudos Cebrap, n. 24) ou das transformações políticas e seus elos com a economia em transição em sociedades latino-americanas, à luz da crise peruana de 1968 (Estudos Cebrap, n. 10).
Chico continuou deixando suas marcas quando uma nova época editorial veio a instituir a Novos Estudos Cebrap. Em seu primeiro numero, de dezembro de 1981, num artigo de grande impacto, “As hostes errantes”, Chico reflete sobre a questão regional e a dinâmica nacional, à luz de uma análise sobre o Nordeste. Tal como o fizera na “Crítica à razão dualista”, a expansão capitalista na região é pensada a partir da complexa imbricação que leva a que o “modelo” brasileiro ali se aninhe em meio a uma estrutura que não havia, no seu dizer, dissolvido as formas e relações pré-capitalistas. Estavam postos os termos para o que viria a ser desenvolvido posteriormente com mais densidade, em 1987, em Elegia para uma re(li)gião.
Sim, porque a Novos Estudos Cebrap persistiria sendo a plataforma de prova de suas novas ideias. Aqui assinou mais que uma dezena de novos artigos enquanto esteve integrado ao Cebrap, ensaiando, em vários deles, argumentos que posteriormente marcariam o curso de suas formulações. Foi assim em 1988 com um texto chave para a sua reflexão teórica subsequente, “O surgimento do antivalor: capital, força de trabalho e fundo público” (Novos Estudos Cebrap, n. 22). Sem contar as múltiplas reflexões sobre a natureza da redemocratização, como em “Democracia ou bestialização” (Novos Estudos Cebrap, n. 8) ou em “Além da transição, aquém da imaginação” (Novos Estudos Cebrap, n. 12), ou mesmo em “Por que pacto social?” (Novos Estudos Cebrap, n. 13). Foi ao leitor da Novos Estudos que Chico fez chegar os primeiros textos de sua reflexão sobre os desafios que se colocavam para um Partido dos Trabalhadores que ainda pendia entre intelectuais e sindicalistas (em “E agora, PT?”, n. 15).
Mesmo depois de deixar o Cebrap, concentrando-se apenas na Universidade de São Paulo e, nela, dedicando-se a consolidar o Nedic (posteriormente Cenedic), os laços de Chico com a Novos Estudos Cebrap continuaram. O papel dos mutirões nas estratégias de habitação, e as armadilhas do seu emprego como dispositivo de política pública foram por ele tratados em “O vício da virtude: autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil” (no n. 74). Bem assim, deu continuidade à reflexão sobre o PT tratando agora da sua chegada ao governo, como sempre de forma provocativa, em “O momento Lênin” (no n. 75).
Em 10 de julho de 2019, a Ciência Social brasileira perdeu Francisco de Oliveira, um dos seus mais criativos e polêmicos intelectuais. Novos Estudos Cebrap se orgulha de ter sido, por longo período, eleita como um conduto para a veiculação das suas ideias. Em contrapartida, também se beneficiou da sua condução, já que por vários anos, Chico foi o diretor-responsável pelo veículo que trazia à cena intelectual brasileira as marcas do debate que se travava na instituição.
E foi como diretor-responsável pela NovosEstudos Cebrap que, em maio de 1987, no n. 7, Chico terminou a sua homenagem a Candido Procópio Ferreira de Camargo com palavras que certamente também valem para homenageá-lo:
Se aqui e ali, nas entrelinhas, você perceber a emoção reprimida quase até à lamentação, não se engane nem se surpreenda: como sugeria o título de um velho clássico do cinema, “os intelectuais também choram”.
Nadya Araujo Guimarães é professora titular sênior do departamento de sociologia da Universidade de São Paulo, pesquisadora 1A do CNPq associada ao Cebrap e membro titular da Academia Brasileira de Ciências.
Chico de Oliveira em gravação de vídeo sobre os 50 anos do Cebrap. Foto: Dafne Sampaio.