Estudos do cuidado, desigualdades sociais e a sedimentação do campo no Brasil

Resenha


Por Regina Stela Corrêa Vieira
6 out. 2021

Guimarães, Nadya Araujo; Hirata, Helena Sumiko. O gênero do cuidado: desigualdades, significações e identidades. Cotia: Ateliê Editorial, 2020.

O gênero do cuidado: desigualdades, significações e identidades, obra mais recente publicada no Brasil por Nadya Araujo Guimarães e Helena Hirata, é uma apurada e brilhante síntese dos estudos do cuidado no país. A proposta é recolher e sistematizar reflexões que as autoras produziram juntas na última década, com o objetivo de mostrar “o vigor da perspectiva do cuidado como trabalho, sublinhando a capacidade dessa nossa agenda de desvendar aspectos importantes da sociedade brasileira contemporânea” (p. 20). Fazem muito mais que isso.

O livro põe em pauta temas sociais prementes, que partem de questões demográficas, envelhecimento populacional, sedimentação do mercado de trabalho feminino e aumento da demanda por cuidado remunerado nos domicílios, chegando à pandemia e à constatação coletiva de que, como seres humanos, todos somos vulneráveis e precisamos cuidar e ser cuidados no percurso de nossa vida. Com efeito, o cuidado revela-se uma lente analítica imprescindível para o aprofundamento de investigações relacionadas ao mundo do trabalho e às perspectivas de gênero, raça e classe, nó para o qual as autoras olham desde o início de suas pesquisas na sociologia.

Enquanto conjunto analítico, a obra aporta novas problematizações a reflexões históricas da teoria feminista relativas à produção e reprodução social, colocando em evidência questões interseccionais e a centralidade do trabalho das mulheres, invisibilizado e desvalorizado, para a manutenção da vida em sociedade. Ao longo dos capítulos, as autoras concatenam ideias e as amarram num crescente: sobrevoam, conceituam e mergulham em cada um dos aspectos da notável pluralidade de formas e relações sob as quais o trabalho de cuidado se exerce, ainda maior em sociedades com profundas desigualdades sociais, como é o caso do Brasil, que ganha destaque ao longo do texto. Analisam a emergência do tema do cuidado como aquele capaz de interpelar os estudos do trabalho e os estudos de gênero, colocando-lhes novas questões, ao mesmo tempo que enriquecem o campo dos estudos do cuidado, aprofundando sua análise como trabalho (p. 19).

O livro é dividido em três partes, totalizando oito capítulos. Os capítulos 1 e 2 compõem a primeira parte. No primeiro deles, as autoras abordam o percurso da agenda dos estudos do cuidado, começando pela complexa conceituação de um termo que é polissêmico, mais tangível no português quando verbo: cuidar. Na sequência, traçam a evolução dos estudos no plano internacional e nacional, começando pela emergência das teorias do care no mundo anglo-saxão, passando pela escola francesa, até chegarem à América Latina. Ao final, explanam sobre o trabalho de cuidado como atividade profissional, questionadora da ideia de que suas habilidades seriam inatas ou naturais das mulheres, demonstrando a relevância e expansão dessa forma de emprego no mundo.

No segundo capítulo, Guimarães recupera a trajetória das formas de nomear o cuidado, buscando pistas sobre a emergência social do tema no Brasil. Seu foco é na trajetória das palavras “cuidador” e “cuidadora”, documentando a recorrência dos termos na grande imprensa nacional – que ganha maior relevo a partir dos anos 2000. Ela confronta os resultados dessa análise com dados relativos ao crescimento dos postos de trabalho de cuidado domiciliar. Reflete, ainda, sobre a incorporação do cuidado profissional não apenas no linguajar popular, mas no repertório do Estado, as fronteiras normativamente estabelecidas e as disputas por reconhecimento que permeiam a luta por direitos dessas categorias.

A segunda parte do livro é voltada às modalidades do trabalho de cuidado, englobando os capítulos 3, 4 e 5. Abre essa parte o capítulo no qual Guimarães apresenta sua formulação acerca do que denomina “circuitos do cuidado”, caminho analítico que evidencia a capacidade do campo de enlaçar diferentes configurações que assumem as relações sociais tecidas no exercício do cuidado. A autora expõe o percurso teórico em torno do conceito, suas diferentes dimensões analíticas, e descreve três circuitos principais, não exaustivos: o cuidado como profissão, como obrigação e como ajuda. Em sociedades desiguais como a brasileira, fatores como classe e renda informam o modo como esses circuitos se combinam para provisão do cuidado, tornando a noção ainda mais valorosa.

O quarto capítulo foca na modalidade do trabalho de cuidado remunerado, refletido em conjunto com o emprego doméstico, uma vez que no Brasil há uma fluidez de fronteiras entre eles. Guimarães e Hirata exploram dados empíricos sobre cuidadoras domiciliares e trabalhadoras domésticas, constatando perfis convergentes e elaborando hipóteses para o embaralhamento dessas identidades entre as próprias profissionais. Por fim, trazem à tona as características domiciliares e a clivagem de classe no acesso a serviços profissionais de cuidado, exigindo que famílias pobres recorram a alternativas fora do mercado.

No quinto capítulo, Guimarães e Priscila Pereira Faria Vieira tratam especificamente do “cuidado como ajuda”, arranjo em que as atividades desempenhadas não são identificadas como profissão, tampouco recaem sobre quem as exerce como uma obrigação social. Argumentam que as “ajudas” sustentam-se em relações sociais de reciprocidade grupal ou comunitária, derivadas de contextos nos quais a pobreza extrema veda o acesso a formas mercantis de cuidado e onde faltam políticas públicas.

A terceira e última parte do livro explora algumas das dimensões estruturantes do cuidado como relação social. Assim, no capítulo 6, Hirata e Natacha Borgeaud-Garciandía tratam da subjetividade, da sexualidade e da dimensão emocional do trabalho de cuidado, reconhecendo a complexidade e ambiguidade dessas atividades. Materializam seus argumentos ao expor casos de cuidadoras em diferentes países, exibindo o trabalho de cuidado real e as dificuldades das situações concretas, nas quais afeto e medo, jogos e nojo ocupam o cotidiano dessas trabalhadoras.

No capítulo 7, Hirata nos apresenta o cuidado em perspectiva comparada, explorando diferenças entre Brasil, França e Japão no tocante à organização social do cuidado. A autora revela o peso do contexto nacional, explorando singularidades dos arranjos de cuidado em cada país e observando convergências – como o papel do Estado, a centralidade da família e do trabalho das mulheres, a falta de reconhecimento e a busca por redes de apoio. A comparação internacional, portanto, torna-se recurso para examinar o trabalho de cuidado de forma interseccional.

Por fim, no capítulo 8, Guimarães e Hirata exploram a relação entre crises e cuidado, desenvolvendo análise sobre o papel da ordem econômica no cotidiano das trabalhadoras e no próprio ato de cuidar. Verificam que o crescimento da demanda por cuidadoras convive com a deterioração das condições de trabalho e de remuneração dessas pessoas. Ademais, colocam em debate a pandemia da Covid-19 e sua influência na internalização do trabalho e refamilização de atividades do cuidado.

Em suma, o livro apresenta e organiza as principais abordagens, autoras(es) e reflexões dos estudos do cuidado como trabalho, servindo como guia para quem pretende tanto conhecer quanto se aprofundar na temática. Ao mesmo tempo, demonstra o relevo do cuidado não só para pensar gênero e trabalho, mas para compreender dinâmicas sociais contemporâneas fundamentais de nossa organização social, sua relação com o debate político, no entrecruzamento de diversos marcadores sociais. Representa, a meu ver, o texto de consolidação desse campo de conhecimento no Brasil.

Guimarães e Hirata foram pioneiras nesses estudos e hoje representam sua vanguarda, sendo que suas reflexões teóricas e investigações empíricas acompanharam o período em que o trabalho de cuidado mais se expandiu no país. Nesse sentido, o presente livro é ainda mais inspirador. E é isso que a leitora ou leitor perceberá no fluido texto que se condensa no resultado lapidado de uma década de pesquisa, mas que nem de longe projeta-se como ponto final. Pelo contrário, as autoras buscam construir caminhos e deixam pistas sobre rotas a serem investigadas: as políticas públicas, os direitos, a correlação com a economia, a organização social do cuidado, as migrações nacionais e internacionais, a familização, as formas dissidentes de cuidado. Um deleite provocativo e um convite para seguirmos.

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Regina Stela Corrêa Vieira [https://orcid.org/0000-0002-4407-4867] é professora de direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc). É pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap e, também, produtora e apresentadora do podcast Cuidar, Verbo Coletivo.