por Victor Callil e Monise F. Picanço
29 jun. 2023
Mobilidade urbana e logística de entregas: um panorama sobre o trabalho de motoristas e entregadores com aplicativos. Disponível em: <https://cebrap.org.br/pesquisas/mobilidade-urbana-e-logistica-de-entregas-um-panorama-sobre-o-trabalho-de-motoristas-e-entregadores-com-aplicativos-caderno-quantitativo>. Acesso em: 15/06/2023.
Recentemente, o Núcleo de Desenvolvimento do Cebrap produziu o estudo Mobilidade urbana e logística de entregas: um panorama sobre o trabalho de motoristas e entregadores com aplicativos, patrocinado pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec). Os pesquisadores envolvidos no projeto identificaram nessa parceria uma oportunidade para produzir conhecimento sobre o trabalho de entregadores e motoristas que trabalham com aplicativos, que apesar de estarem presentes nas cidades brasileiras desde meados dos anos 2010, apresentaram um aumento relevante no volume ocupacional a partir de 2019.
Desde o início, o objetivo do estudo foi o de somar informações ao campo, já qualificado e rico de contribuições, no qual o próprio Cebrap possui notória trajetória de discussão, a partir das mais diversas perspectivas. Dentro do próprio Núcleo de Desenvolvimento já foram elaboradas pesquisas sobre o trabalho de entregas por bicicleta (Minarelli, 2020; Altheman, 2021; Reck, 2022); aplicativos de passageiros e transporte coletivo (Alves, 2021) e poluição do ar e transporte de passageiros (Barros, 2023).
Uma pesquisa empírica que busque produzir e aprofundar conhecimentos em diferentes temas da sociedade, independentemente de seu objeto e financiamento, precisa seguir algumas premissas importantes. É preciso garantir autonomia para seu desenho, condução e operação, bem como identificar quais são as condições possíveis de análise, de modo a assegurar que seu desenvolvimento seja realizado de maneira idônea.
Exemplo disso são as desafiadoras pesquisas amostrais. Dificilmente a definição do processo de amostragem ideal para o universo estudado é apenas uma questão de escolha. Diversos fatores pesam quando precisamos lidar com a realidade de um trabalho de campo que se apresenta como um fenômeno vivo e cambiante. Se nosso objeto apresenta limitações, a pesquisa deverá respeitá-las, mas também encontrar alternativas para trazê-las ao terreno da discussão pública.
Neste texto, gostaríamos de abordar os aprendizados referentes à produção da pesquisa Mobilidade urbana e logística de entregas, buscando, assim, apresentar parte da nossa cozinha, num passeio pelos bastidores que vai além do caderno quantitativo[1]. Os aprendizados perpassaram o campo e o fenômeno em investigação, e dizem respeito especialmente a processos internos de decisão e escolhas de metodologia de análise. Uma pesquisa idônea, para além da liberdade dos pesquisadores, precisa ser pensada a partir de um desenho amostral que evite ao máximo uma produção enviesada. Assim, aspectos como aleatoriedade na escolha dos entrevistados, representatividade estatística da amostra e controle do processo de aplicação de campo são etapas cruciais para a garantia de resultados robustos e confiáveis.
O primeiro desafio enfrentado na condução da pesquisa foi a coleta primária, realizada por meio de um survey aplicado aos motoristas e entregadores que trabalham com aplicativos. Entrevistar esse público demandou construir uma amostragem representativa de todo o país. Para isso, foi necessário, por um lado, trabalhar a partir das bases de pesquisas oficiais (em especial a PNAD Contínua e a PNAD Covid-19), que captaram a incidência do setor em alguns recortes territoriais para o desenho da amostra, e, por outro, recrutar aleatoriamente os respondentes da pesquisa com base em uma lista de contatos que fosse a mais representativa possível do setor. Nesse sentido, a relação de contatos utilizada para os sorteios de respondentes por estrato amostral foi essencial para compor uma amostra que, efetivamente, pudesse dar conta da representatividade populacional para os números apresentados nos recortes territoriais definidos.
A condução do campo da pesquisa amostral teve ainda mais um aprendizado: a importância da conjuntura. A pesquisa tinha perguntas detalhadas, que demandavam uma entrada em campo mais pessoalizada de modo a garantir a qualidade das respostas. Isso nos levou a desenvolver um survey telefônico, no qual o questionário foi aplicado por um entrevistador. Fomos a campo durante o período eleitoral de 2022 e o impacto dessa conjuntura foi evidente. A conjuntura reduziu o número de aplicadores de questionários disponíveis no mercado, posto que eles estavam em sua maioria envolvidos nas pesquisas relacionadas ao pleito eleitoral. Com isso, a duração do trabalho de campo se alongou e tivemos que aumentar as listagens para atingir as cotas definidas para cada estrato amostral.
Um segundo desafio enfrentado pela coordenação do projeto foi determinar quais dados administrativos, já processados, seriam disponibilizados para a análise. Isso se deu por um contexto bastante palpável: a Amobitec é composta por empresas que, ainda que possuam interesses comuns e busquem compreender seu campo de atuação, competem entre si. Assim, foram necessárias diversas reuniões com os representantes dessas empresas para estabelecer um consenso sobre o uso dos dados sem ferir as diretrizes da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e nem expor questões estratégicas das próprias empresas. Isso limitou o acesso da pesquisa aos dados, e fez com que o controle das informações recebidas se tornasse bastante relevante. Após essas reuniões, acordou-se que as empresas processariam os dados administrativos internamente, nos enviariam somente as tabelas com os resultados e que o Núcleo de Desenvolvimento do Cebrap faria as devidas ponderações deles com base nas respostas obtidas pela aplicação do survey. Este acordo foi muito importante, pois os resultados ajudaram a evidenciar questões que são bastante caras ao mercado de trabalho impulsionado pelas empresas do setor.
Este mercado é constituído,[2] essencialmente, por mão de obra informal, cuja relação das entregas ou do transporte de passageiros com os aplicativos se estabelece de diferentes formas. Também é característico dessa atividade a oferta da força de trabalho para mais de uma plataforma, recorrente e concomitantemente. Sem identificação dos modos de uso dos aplicativos pelos motoristas e entregadores, a capacidade de mensurar as jornadas de trabalho, incluindo o tempo de espera entre as corridas, a partir exclusivamente dos dados empresariais se tornava pouco tangível, uma vez que um mesmo trabalhador pode estar logado em dois aplicativos, inclusive durante o trajeto da corrida.
Ao mesmo tempo, o processo de coleta escolhido para a pesquisa – o survey telefônico – obteve pouco detalhamento sobre a jornada desses trabalhadores. Justamente porque partiram apenas das percepções dos interlocutores, as respostas obtidas apresentaram uma inconsistência muito alta e pouco precisa na variável de horas trabalhadas. Ou seja, os dados coletados não possibilitaram a determinação da média de horas trabalhadas. É necessário reconhecer que essa é uma limitação da pesquisa, que deve ser levada em conta na interpretação dos resultados.
Assim, nosso estudo se restringiu a trabalhar com cenários hipotéticos formulados a partir dos dados palpáveis: os dados de ganhos por tempo em corrida. Só eles nos permitiram estimar a remuneração das jornadas de trabalho com os aplicativos. Essa estimativa buscou ainda calcular os ganhos líquidos, considerando custos médios com manutenção, seguro, impostos e combustível, os quais também foram estimados a partir das médias de gastos reportadas pelos próprios motoristas e entregadores entrevistados na pesquisa.
O cenário apresentado traz ainda um valor não aplicável ao cotidiano – o valor de jornada de 40 ou 20 horas semanais sem intervalo de tempo entre as corridas. Ele o faz para mostrar o ponto a partir do qual é possível estimar os valores de remuneração considerando jornadas com até 30% de tempo sem corridas, ou seja, quando motoristas e entregadores estão logados nos aplicativos, mas não estão atendendo a um chamado. O cenário apresentado não buscou determinar a remuneração de um motorista ou entregador, mas dar instrumentos para ampliar a discussão, trazendo dados dentro dos quais outras pesquisas, coletas e análises poderão ser realizadas, produzindo mais conhecimento sobre o campo. Vale dizer que a proporção do tempo sem corrida pode superar os 30% previstos nesse cenário, a depender de condições específicas do território de atuação dos mercados. Em cidades onde a movimentação urbana é maior, espera-se um volume maior de corridas e um tempo sem corridas menor. Por outro lado, em locais onde a vida urbana é menos dinâmica, a tendência é um volume menor de corridas, com um maior tempo de espera entre elas. Além disso, dada a maneira como o mercado opera, a variação entre o preço das corridas também pode ser grande. É por isso que o cenário apresentado também contempla, além da média, intervalos de remuneração mais comuns, que levam em consideração a proporção dos trabalhadores dentro dos percentis de ganhos mais frequentes.
Por fim, a expectativa sobre os dados produzidos pela pesquisa e o uso de “grandes números” de forma pouco cuidadosa, sobretudo por parte dos veículos de comunicação, trouxe como desafio a dissonância entre a complexidade de cenários deste fenômeno e a busca de uma mensuração definitiva. A pesquisa realizada teve como intuito discutir o trabalho dos entregadores e dos motoristas de forma ampla, sem cravar resultados incontestáveis, mas apresentando cenários possíveis. Entretanto, o que percebemos nas primeiras matérias que circularam na grande imprensa foi uma espécie de simplificação dos resultados, realizando saltos interpretativos que desconsideravam as limitações da pesquisa e a complexidade do campo.
É possível dizer que conseguimos, por um lado, estabelecer parâmetros de jornadas, ganhos e outros dados que nos permitirão, daqui para frente, compreender melhor a situação dos trabalhadores de entrega e transporte por aplicativo. Por outro, os resultados da pesquisa também poderão subsidiar o debate de temas extremamente importantes a esse público, como segurança viária, perfis dos trabalhadores, expectativas sobre o mercado de trabalho, trajetória desses trabalhadores e assim por diante.
Como pesquisadores que fazem parte de um ambiente democrático, onde a discussão sempre foi uma regra, acreditamos que é possível irmos mais além. O Cebrap é um espaço de discussão. Assim, este texto busca dialogar com alguns dos questionamentos colocados no debate público nesta mesma tônica, respeitando a pluralidade de ideias e iniciando uma discussão sobre a pesquisa, que foi desenvolvida de forma autônoma e independente.
Victor Callil é doutorando em História pela Unesp, diretor administrativo do Cebrap e coordenador do Núcleo de Desenvolvimento. Pesquisador do Cebrap desde 2009, atua nos temas de mobilidade urbana, mercado de trabalho e políticas públicas.
Monise F. Picanço é doutora em Sociologia pela USP, coordenadora de cursos do Cebrap e coordenadora de projetos no Núcleo de Desenvolvimento. Pesquisadora do Cebrap desde 2006, atua nos temas de mercado de trabalho, políticas públicas, inovação e mobilidade urbana.
Referências
ALTHEMAN, E. “Empreendedorismo de si no capitalismo de plataforma: um estudo com entregadores ciclistas”. In: CALLIL, V.; COSTANZO, D. Desafio: estudos de mobilidade por bicicleta 4. São Paulo: Cebrap, 2021, pp. 69-119. Disponível em: <https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2021/08/Estudos-de-Mobilidade-por-bicicleta-4.pdf>. Acesso em: 26 jun. 2023.
ALVES, G. B. “Quantas milhas? O uso de aplicativos de ride-hailing na periferia oeste do Rio de Janeiro”. In: CALLIL, V.; COSTANZO, D. Mobilidade por aplicativo: estudos em cidades brasileiras. São Paulo: Cebrap, 2021, pp. 173-221. Disponível em: <https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2021/05/Mobilidade-por-aplicativo-estudos-em-cidades-brasileiras.pdf>. Acesso em 26 jun. 2023.
BARROS, C. P. DA P. “Emissões de gases de efeito estufa de viagens por aplicativo no município de São Paulo e perspectivas para a eletrificação no setor”. In: CALLIL, V.; COSTANZO, D. Desafio 6: mobilidade urbana e mudanças climáticas. São Paulo: Cebrap, 2023. (No prelo).
MINARELLI, G. “Entrega por bicicleta em São Paulo: mercado, trabalho e práticas ciclísticas”. In: CALLIL, V.; COSTANZO, D. Desafio: estudos de mobilidade por bicicleta 3. São Paulo: Cebrap, 2020, pp. 107-178. Disponível em: <https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2020/10/Estudos-de-mobilidade-por-bicicleta-3.pdf>. Acesso em: 26 jun. 2023.
RECK, Y. “Mulheres e cicloentregas: um estudo de caso sobre o coletivo Señoritas Courier”. In: CALLIL, V.; COSTANZO, D. Desafio: estudos de mobilidade por bicicleta 5. São Paulo: Cebrap, 2022. Disponível em: <https://cebrap.org.br/wp-content/uploads/2022/06/CEBRAP-ITAU-Estudos-de-mobilidade-5.pdf>. Acesso em: 26 jun. 2023.
Notas
[1] No momento de publicação deste texto, o caderno referente à qualitativa da pesquisa está sendo produzido.
[2] É comum algumas plataformas de entregas operarem, em parte do seu serviço, com os “entregadores OL” (sigla para Operador Logístico). Ou seja, são entregadores contratados por uma terceirizada (com CLT) para trabalharem em determinados locais em determinados horários.
Crédito da imagem: Daniel Souza.