Ao mestre, com carinho e reconhecimento

Homenagem

Por Marina de Mello e Souza

9 jan. 2024

 

 

Alberto da Costa e Silva é uma daquelas raras unanimidades. Pessoa de sentimentos delicados, gestos cortes, atenção aguda, interesse pelo próximo e curiosidade que alimentou uma excepcional erudição. Saiu dessa vida deixando um rastro de boas lembranças entre aqueles que de alguma forma com ele tiveram contato. Diplomata, africanista, poeta, memorialista, observador da realidade ao seu redor, foi central no desenvolvimento dos estudos sobre o continente africano no Brasil. E é apenas essa sua face, dentre as muitas que cultivou, que será aqui tratada.

Fascinado desde adolescente pelo continente africano, que ele dizia estar unido ao Brasil pelo Atlântico, defendeu com paixão a importância de conhecermos as histórias das sociedades africanas, das quais vieram boa parte de nossos antepassados, para melhor conhecermos a história do Brasil. E sobre essas histórias escreveu livros que desde sua publicação foram fundamentais para a formação dos que buscavam conhecer as sociedades africanas do passado.

A Enxada e a Lança: A África antes dos Portugueses, publicado em 1992, como conta o autor no prefácio, foi escrito pelo estímulo de Carlos Lacerda, que lhe sugeriu essa ideia, uns quinze anos antes, depois de mais uma vez ouvi-lo discorrer sobre a história de certas partes e momentos do continente africano, mostrando seu vasto conhecimento, resultante da curiosidade de uma vida, cujas circunstâncias particulares foram aproveitadas para alimentar essa paixão. Nesse volume que penso ter sido o primeiro manual de história da África antes de 1500 a ser escrito no Brasil, a narrativa envolvente é resultante de uma especial atenção ao texto e da sua enorme erudição, dividida com simplicidade com o leitor e exposta nas notas e na bibliografia.

Dez anos depois, em 2002, veio a público A Manilha e o Libambo: A África e a Escravidão, de 1500 a 1700. Neste volume, que deu sequência à partilha do seu conhecimento sobre o continente africano, continua evidente o cuidado com o texto e um estilo próprio, de quem sempre lidou com a escrita como veículo de emoções, além de informações. Quanto às notas, servem como preciosos roteiros de leitura àqueles que buscam aprofundar os assuntos abordados no livro. Essas duas obras, junto a coletânea de artigos à qual deu o título de Um Rio Chamado Atlântico. A África no Brasil e o Brasil na África, de 2003, que reuniu textos esparsos anteriormente publicados, foram o chão sobre o qual se apoiou quem então começava a olhar para a história do continente africano, que ia sendo descoberta com assombro, principalmente devido a ter estado até então praticamente desconhecida.

Na área de África contemporânea os estudos estavam mais desenvolvidos, apesar de bastante modestos se considerarmos a importância do conhecimento desse continente para nós brasileiros. Mas ninguém até então nos tinha falado sobre as sociedades africanas do passado como Alberto da Costa e Silva. Quando a história da África e das culturas afro-brasileiras começaram a deixar de ser tema de pequenos nichos, sejam da academia ou dos movimentos sociais, o que começou a ocorrer de forma tímida nas duas últimas décadas do século XX, os seus textos começaram a circular de forma mais ampla, assim como aumentou sua participação em eventos públicos. Com a promulgação da lei 10.639, em 2003, tornou-se premente a formação de professores capazes de ensinar os conteúdos que passavam a ser exigidos. Àquela época, a oferta de textos em português sobre a África de tempos passados era bastante escassa: eles eram pinçados em revistas acadêmicas, havendo uma ou outra tradução de obras basilares, feita no Brasil ou em Portugal. Os dois volumes de Alberto da Costa e Silva sobre a história da África até o século XVIII tornaram-se peças indispensáveis da biblioteca de professores e alunos, que ano após ano expressavam seu encantamento com a descoberta da história do continente africano e de uma ancestralidade até então silenciada.

Além dos dois manuais que hoje são clássicos da historiografia brasileira, seu livro Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos (2004), é a mais completa biografia dessa figura extraordinária, que já foi tema de filmes e romances, um baiano que nas primeiras décadas do século XIX tornou-se o maior traficante de escravos da costa ocidental africana. Trata-se de um estudo exemplar que ao reconstituir a trajetória do Chachá, conhecido como o Vice-rei de Ajudá (principal porto do Daomé), apresenta um panorama minucioso de como se dava o comércio de escravizados naquela região.

Ao lado desses livros centrais para o estudo da história da África e do comércio de gente, artigos seus sobre temas diversos das sociedades africanas compuseram as coletâneas O Vício da África e Outros Vícios, editado em Portugal em 1989; Das Mãos do Oleiro: Aproximações (2005); A África e os Africanos na História e nos Mitos (2021).

A lei que torna obrigatório o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira completou 20 anos, ao longo dos quais vimos muitas mudanças, apesar de ainda ser bastante incipiente a sua aplicação. A obra de Alberto da Costa e Silva foi de utilidade imensa para a implantação da área de estudos africanos no Brasil e para a formação de pesquisadores e professores. Com a diversificação da demanda estimulada pela lei de 2003, que dinamizou não só o ensino em todos os níveis como o mercado editorial, Costa e Silva sentiu necessidade de ampliar seu público leitor e publicou Um Passeio pela África (2006), voltado para o público infanto-juvenil, e A África explicada aos meus filhos (2008), onde organiza o texto como uma conversa, na qual perguntas são respondidas de forma densa e clara.

Um mestre exemplar, tornou a paixão de sua vida uma fonte de erudição e, sendo um artista da escrita, com seus livros introduz o leitor não só aos temas neles desenvolvidos, mas também ao prazer da leitura. Um dia em conversa no seu apartamento em Laranjeiras, povoado de peças africanas e com uma biblioteca que acredito ser a mais completa sobre estudos africanos existente no Brasil, disse que o século que mais gostava era o XIX, e que estava trabalhando no terceiro volume do que sempre pensou ser uma trilogia. Foi a única notícia que tive desse seu projeto. Resta saber que tesouros guardam as gavetas de seu escritório, agora que ele mesmo não está mais entre nós. Sua ausência física será muito sentida, pois além da profusão de informações que jorravam de suas conversas, emanava gentileza e consideração ao próximo. Mas a despeito da saudade que deixa, sua obra faz com que continue entre nós, calçando os caminhos que levam a uma sociedade mais igualitária, na qual ganha o lugar de destaque merecido a nossa herança das culturas africanas, trazidas por homens, mulheres e crianças violentamente arrancadas de suas terras natais, e que ao se reinventarem  sob as condições mais adversas foram centrais na construção do Brasil.

 

Marina de Mello e Souza é professora associada do Departamento de História da FFLCH da USP. É livre docente em História da África pela USP, doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre em História da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). É autora de artigos publicados em revistas acadêmicas e de difusão do conhecimento histórico, e dos livros Paraty, a Cidade e as Festas, 1994 e 2008; Reis Negros no Brasil Escravista: História da Festa de Coroação de Rei Congo, 2001 e 2006; África e Brasil africano, 2006, 2008 e 2013, e Além do Visível: Poder, Catolicismo e Comércio no Congo e em Angola (Séculos XVI e XVII), 2018 e 2021.

 

Créditos da Imagem: “Alberto da Costa e Silva”, por Back2Black Festival, licenciada sob CC BY-NC-NC 2.0. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/40863951@N04/3774406069>. Acesso em: 9/2/2024.