por Claudinei Roberto da Silva
17 set. 2022
Na sua complexidade a história da arte e da cultura pode ser considerada a partir de lugares distintos. Os vários ramos da estética, da antropologia, da sociologia e da filosofia, por exemplo, contribuem inestimavelmente para a construção de um léxico sobre os fenômenos artísticos e culturais. E, de fato, a profundidade de certos autores e de suas obras mais características sugere que a multidisciplinaridade é indispensável na abordagem de seus percursos.
Na periferia do capitalismo as circunstâncias históricas que têm determinado a insurgência de forças sociais até aqui oprimidas colaboram igual e consequentemente para emergência de pensamentos polissêmicos, policêntricos e inclusivos, em detrimento daqueles em voga, caracteristicamente marcados pela exclusão, pela dicotomia e pelos binarismos – pensamentos que, por exemplo, insistem na lógica que contrapõe o “popular” ao “erudito”, para prejuízo do primeiro e benefício do segundo.
Considerar a arte como trabalho, na perspectiva da história e da vida social, implica admitir que nesse processo o papel do indivíduo é relativo e o protagonismo do artista, enquanto “gênio individual”, controverso. No entanto, há que se admitir o papel de vanguarda que caracteriza a atuação de alguns indivíduos e instituições quando eles catalisam e organizam, inclusive simbolicamente, os anseios e as demandas por mudanças estruturais de um determinado grupo. Vanguarda é um substantivo feminino usado para designar a primeira linha de um exército, uma organização militar ou força paramilitar que assume a dianteira numa ação. Na modernidade o termo foi incorporado ao vocabulário artístico e político para designar padrões que resultem na contestação e na ruptura de uma ordem estabelecida.
Ora, causa grande e justificada comoção o desaparecimento de uma personagem que por sua atuação, caracteristicamente de vanguarda, tornou-se imprescindível para as narrativas que projetam novos paradigmas para a história da arte e da cultura no nosso meio, tanto mais se essa figura é, como Emanoel Araújo, uma pessoa cuja atuação transcendeu os horizontes do meio ao qual esteve associado, e implicou numa atuação de caráter mais social que individual.
Emanoel Alves Araújo (Santo Amaro da Purificação, Bahia, 15 de novembro de 1940) será lembrado, entre outras coisas, como o demiurgo criador do Museu Afro Brasil, inaugurado no parque do Ibirapuera em São Paulo no ano de 2004, e que foi por ele dirigido até sua morte, em 7 de setembro deste ano de 2022.
Instalado no Pavilhão Padre Manuel da Nóbrega, agora rebatizado com o nome de Emanoel Araújo, um espaço de 11 mil m2, mais do que um acontecimento estético, o Museu Afro Brasil é igualmente um acontecimento ético e político que marca de maneira indelével o cenário cultural do país e da cidade onde está sediado. Neste sentido, a criatura e o criador se confundem, já que o museu salvaguarda e divulga documentos, artefatos e obras que depõe sobre a história dos negros e negras no Brasil, das narrativas engendradas pelas múltiplas exposições que ele abriga. O que se depreende do acervo ali reunido é a história de um país bem como a ventura e desventura diaspórica de parcela significativa da humanidade.
Mas o artista, que ele também foi, terá seu nome igualmente associado à extraordinária gestão realizada entre os anos de 1992 e 2002, quando foi diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Emanoel Araújo também esteve à frente da Secretária de Cultura de São Paulo e, paralelamente a essas atividades, nunca abdicou do fazer artístico, desenvolvendo uma invulgar trajetória de artista. Sua obra, presente em instituições importantes, tem grande densidade conceitual e poética, e desenvolveu-se organicamente, desdobrando-se desde a refinada figuração dos primórdios, até o sofisticado concretismo abstrato que definitivamente o consagrou nacional e internacionalmente como um gravador e escultor de referência.
O que torna especialmente relevante a atuação de Emanoel Araújo é, justamente, sua conhecida determinação e capacidade de, num cenário profundamente marcado pelo racismo, pela homofobia e pelo preconceito contra os nordestinos, capturar os anseios de grupos excluídos, a que, aliás, ele mesmo pertencia, e traduzi-los em projetos que elevam, distinguem, redimem e consagram esses grupos e o próprio Araújo. É como se ele, Emanoel Araújo, espelhasse nas suas ações os anseios que partem do indivíduo, mas que o ultrapassam, dada sua irrecusável vocação para o social.
Em 1988, celebrou-se, com a pompa, circunstância e equívocos, o Centenário da Abolição da Escravidão – abolição essa que não previu qualquer reparação ao elemento escravizado, e que não poderia ser levada a cabo sem a participação decidida de abolicionistas e insurgentes negras e negros, fundamentais nesse processo como demonstrou, já em 1959, o jornalista, professor e sociólogo Clóvis Moura, em seu livro Rebeliões da Senzala. Quilombos, Insurreições, Guerrilhas.[1] Através de alentada pesquisa, o professor Moura revelou-nos o inequívoco protagonismo de negras e negros na luta por sua emancipação, fato frequentemente negado pela crônica racista, e por isso mesmo sobejamente comprovado nas exposições e ações promovidas por Emanoel Araújo enquanto administrador público e curador.
Se aqui mencionamos o avanço gradativo de processos sociais emancipatórios e por direitos civis, é porque quando a memória e a história desses indivíduos escapam ao cancelamento promovido pelo epistemicídio, isto se deve, não exclusivamente, mas também, a ação de historiadores, artistas e curadores como Emanoel Araújo, que amalgama dessas três vocações.
No bojo das celebrações do Centenário da Abolição, chamou atenção a realização de um evento nas dependências do Museu de Arte Moderna de São Paulo: a enciclopédica exposição A mão afro-brasileira: significados da contribuição cultural e artística, organizada por Emanoel Araújo.[2] A exposição, monumental, permanece como modelo para outras que, desde então, com maior ou menor êxito, repetem a proposta multidisciplinar daquela mostra original. Ali Araújo desenvolveu com ímpeto característico as teses, inclusive de expografia, que seriam posteriormente sedimentadas numa exposição de longa duração no Museu Afro Brasil.
Dentre as exposições que Emanoel Araújo organizou ou fez curadoria destacam-se Vozes da diáspora (1992), Os herdeiros da noite: fragmentos do imaginário negro (1994-95), Para nunca esquecer: negras memórias / memórias de negros (2001) e Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da escravidão (2013).[3] Foram exposições seminais que criaram plataformas a partir das quais foi possível, dialogicamente, verificar o quanto a luta de negros, negras, indígenas (eles também) e periféricos está implicada nos processos artísticos e culturais que hoje ganhou a atenção das instituições e da mídia.
O trabalho e a trajetória de Emanoel Araújo confundem-se com a própria luta dos afrodescendentes: é parte dela. Se as lutas empreendidas pelos herdeiros da diáspora afro-atlântica no Brasil não progredissem, tampouco progrediria o trabalho de Emanoel Araújo – trabalho de múltiplas facetas que, no limite, aprofunda o entendimento que temos da nossa incipiente democracia, uma democracia que não pode prescindir do trabalho, da inteligência e sensibilidade como as de Araújo.
Por tudo isso a permanência do seu legado só será garantida num cenário em que os preconceitos que ele combateu continuem sob o fogo da crítica que exige a extinção deles. A memória desses próceres da arte, da cultura, da luta antirracista e por direitos civis – como foram, por exemplo, os polímatas Abdias do Nascimento (1914-2011) e Manuel Querino (1851-1923), a escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), a filósofa Lélia Gonzalez (1935-1994), o escritor e jornalista Lima Barreto (1881-1922), o geógrafo Milton Santos (1926-2001) e o próprio Emanoel Araújo – só permanecerá se vencedora for a luta que em vida eles empreenderam, é só se houver avanço e aprofundamento da democracia e da justiça social, que garante a permanência desse legado fundante para o gáudio daqueles que souberem valorizá-lo.
Claudinei Roberto da Silva é curador, artista visual e professor de educação artística com habilitação em Artes Plásticas pela USP, atuando em diversas instituições, como o MAC-USP, MIS-SP e o Museu Afro Brasil. Assinou diversos projetos, como a exposição O banzo, o amor e a cozinha da casa (Museu Afro Brasil, 2014); Audácia concreta: as obras de Luiz Sacilotto (Museu Oscar Niemeyer, 2015); o simpósio Presença africana no Brasil (Centro Cultural Banco do Brasil, 2015); e a 13a. Bienal Naifs do Brasil (Sesc Belenzinho, 2017), em parceria com Clarissa Diniz e Sandra Leibovici.
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[1] Moura, Clóvis. Rebeliões da Senzala. Quilombos, Insurreições, Guerrilhas. São Paulo: Fundação Maurício Grabois / Anita Garibaldi, 2020.
[2] A exposição foi publicada em livro em 1988 e ganhou uma segunda edição, revista e ampliada para dois volumes, em 2010. Cf. Araújo, Emanoel (org). A mão afro-brasileira: significados da contribuição cultural e artística. 2. ed. rev. e ampli. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo / Museu Afro Brasil, 2010.
[3] Vozes da diáspora. Curadoria de Emanoel Araújo, José Roberto Teixeira Leite e Olívio Tavares de Araújo. Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1992; Os herdeiros da noite: fragmentos do imaginário negro. Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1994-95; Para nunca esquecer: negras memórias / memórias de negros. Museu Histórico Nacional, 2001; Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da escravidão. Museu Afro Brasil, 2013.
Referências bibliográficas:
Aguilar, Nelson (org.). Arte afro-brasileira. Catálogo Mostra do Redescobrimento. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo; Associação Brasil 500 anos, 2000.
Araújo, Emanoel (org.). Museu Afro Brasil: um conceito em perspectiva. São Paulo: Instituto Florestan Fernandes de Políticas Públicas – Secretária Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial, 2006.
Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da escravidão (catálogo). Curadoria de Emanoel Araújo. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2014.
Emanoel Araújo: autobiografia do gesto (catálogo). Textos de Agnaldo Farias, Jayme Mauricio, Roberto Pontual et al. São Paulo: Instituto Tomie Otake, 2007.
Leite, José Roberto Teixeira. Pintores negros do oitocentos. Edição de Emanoel Araújo. São Paulo: Edições K; MWM,1988.
Os herdeiros da noite (catálogo). São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo: 1994.
Para nunca esquecer: negras memórias / memórias de negros (catálogo). Curadoria de Emanoel Araújo. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2001.
Crédito da imagem: Eduardo Knapp / Folhapress