Doutora Honoris Causa: Unicamp concede título para Elza Salvatori Berquó

Evento, Homenagem

 

23 set. 2021

Neste ano, a professora e pesquisadora Elza Berquó, uma das fundadoras do Cebrap, recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A cerimônia, realizada no dia 30 de agosto, foi transmitida pelo canal do YouTube da instituição. O vídeo com a gravação completa está disponível no link: https://youtu.be/rV5fq-FzZwM. O texto abaixo é uma transcrição do discurso da professora Elza, proferido na cerimônia de entrega do prêmio. 
 
Especialista em estatística e demografia, autora de pesquisas demográficas de grande relevância para o Brasil, Elza Berquó também recebeu neste ano o título de Estatístico Emérito do Conselho Nacional de Estatística (Confe). Na Unicamp, a professora fundou o Núcleo de Estudos de População (Nepo), em 1982, e contribuiu para a criação do Programa de Pós-Graduação em Demografia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

 


Elza Salvatori Berquó:

Muito obrigada a todos e todas. Ainda estou muito emocionada após ouvir tantas referências sobre o pouco que eu fiz. Na figura do reitor professor Antônio José de Almeida Meirelles, eu quero homenagear e cumprimentar todas as autoridades da Unicamp, os seus professores, os seus alunos e os seus funcionários. De fato, eu fui à Unicamp, ou para a Unicamp, em 1982, quando o visionário, então reitor, José Aristodemo Pinotti, usando já da chegada da Lei da Anistia, me convidou para fazer parte de uma nova visão da universidade, que era criar núcleos e centros, rompendo com a aquela forma mais tradicional, rompendo, mas não eliminando, a forma mais tradicional de institutos, departamentos e faculdades. Esses núcleos e centros teriam características multidisciplinares, poderiam dialogar com outras unidades dentro e fora da Unicamp. De fato, eu aceitei o convite, colocando algumas restrições, como já foi mencionado aqui. Esta chegada à Unicamp em 1982, aproveitando a Lei da Anistia, é parte do momento da minha vida a que só consegui chegar através do fato de que em 1969 Fernando Henrique Cardoso fundou o Cebrap, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Não tínhamos, após a aposentadoria,[1] para onde ir, a não ser ficar no isolamento (até parece hoje, não é?), no isolamento das nossas casas. O Cebrap representou para mim a minha primeira casa fora da minha casa. Era uma casa onde eu pude me desenvolver, e desenvolver a demografia, nos anos em que não era possível voltar à universidade.

No Cebrap, a nossa primeira pesquisa foi sobre reprodução humana, uma pesquisa que rompeu com os paradigmas das pesquisas de fecundidade existentes até então. Esse rompimento se deu por quê? Porque nós olhamos o comportamento individual, não como em si, mas como uma consequência, ou como uma classificação dos modos de organização da produção, atravessados por uma mediação importantíssima. Ou seja, a reprodução não se dava apenas porque o indivíduo é o indivíduo, mas porque ele está vinculado a um modo de organização da produção no seu país ou em qualquer lugar onde estiver, mas usando também e levando em conta as mediações, como a escola, a família e a própria religião. Essa pesquisa envolveu todos os pesquisadores do Cebrap, e ela foi modelo para algumas outras instituições fora do Brasil. Essa pesquisa me parece que foi um marco realmente.

Bem, estando na Unicamp, a nossa ideia era dar prosseguimento aos estudos de população. Tentamos fazer na Unicamp aquilo que não tínhamos podido continuar fazendo na universidade. Eu queria destacar que o Nepo[2] foi pioneiro na consideração dos estudos da população indígena. Nenhum outro lugar havia considerado – e o Nepo considera até hoje como uma de suas disciplinas, ou de seus interesses – o respeito e os estudos sobre a população indígena, tão maltratada no país: as suas terras, as suas reservas, ameaçadas o tempo todo. Nós fomos os primeiros e continuamos muito interessados nesses estudos.

Outro ponto para o qual eu queria chamar a atenção, e que não foi realizado só no Nepo, mas começou no Cebrap, foi a primeira ação afirmativa da mulher negra, ou da população negra. Ação afirmativa porque nós conseguimos que as mulheres negras pudessem participar dos programas de estudos. O que acontecia antes dessa ação afirmativa é que as bolsas de estudo, quando oferecidas e anunciadas, eram de uma forma geral para as mulheres. E, então, é claro que a mulher negra, pelo fato de estar em um nível bem abaixo do necessário para sobreviver, e também passando por estudos menos rigorosos, porque as escolas também eram escolas mais simples, elas nunca venciam este concurso: as brancas ocupavam os lugares. Então, essa ação afirmativa foi uma seleção, dentre as mulheres negras, das mulheres negras. Foram escolhidas, portanto, mulheres negras para trabalhar conosco. Elas aprenderam com o grupo um pouco da demografia, um pouco da estatística, a fazer trabalho de campo, aplicar questionário, e daí surgiu o primeiro estudo sobre a saúde da mulher negra. Estudamos nessa ocasião também as doenças que são típicas da população negra, como a anemia falciforme, que é uma característica, o mioma uterino e várias outras situações de doenças que caracterizam essa população e, portanto, merecem um tratamento também todo especial.

Eu queria dizer que o Nepo, para mim, foi o meu filho temporão. Eu, por uma decisão, por causa da minha carreira, não quis ter filhos. E os poderia ter tido, mas meus filhos foram os meus alunos, alunas, que são amigos até hoje e que compõem esse cenário incrível e maravilhoso da pesquisa em demografia no país. Nesse período de vida, pudemos enfrentar os países mais desenvolvidos que queriam, como disse o Roberto,[3] ter uma interferência direta sobre os menos desenvolvidos. A onu organiza, a cada dez anos, conferência sobre população e desenvolvimento. E nessas instâncias, o Brasil esteve também representado, e o Nepo esteve comigo em 1994 no Cairo (no Egito), que foi a conferência que mudou o rumo das anteriores: a de Roma, a de Bucareste e a do México. Ou seja, era uma conferência sobre população e desenvolvimento, sem nenhuma meta demográfica. Isso resultou de uma grande confluência de opiniões das mulheres deste Brasil e do mundo. A conferência do Cairo foi uma conferência que pela primeira vez chamou-se “População e desenvolvimento”. E lá nós enfrentamos grandes opositores aos nossos mundos que ainda estão em desenvolvimento.

Este momento para mim hoje, esta homenagem que eu estou recebendo, eu queria que todos soubessem que será para mim como uma estrela que eu levarei comigo até o final dos tempos. Porque, desculpe, eu estou emocionada, muito emocionada, porque o meu tempo é curto, mas ele foi longo o suficiente para ver e ouvir vocês com todas essas falas carinhosas. Jovens, continuem a estudar, continuem a luta pela democracia. Aliás, a Unicamp é mestre no respeito à democracia, e acredito que, mais uma vez, diante da grande ameaça que nosso país vive neste momento, a Unicamp saberá, como sempre soube, enfrentar e vencer mais uma vez. Mais uma vez, muito obrigada a todos e todas que eu guardo no meu coração.

[1] Elza Berquó e outros fundadores do Cebrap haviam sido aposentados compulsoriamente da universidade depois da promulgação do AI-5, em 1968, durante a ditadura militar.
[2] Núcleo de Estudos de População, da Unicamp, hoje chamado de Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó”.
[3] Roberto Luiz do Carmo, presidente da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep) e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, presente à cerimônia de outorga.