Por Jaciane Milanezi
Caldwell, K. L. Health Equity in Brazil: Intersections of Gender, Race and Policy. Champaign: University of Illinois Press, 2017, 216 pp.
Alyne da Silva Pimentel Teixeira, mulher, negra, mãe, moradora de bairro periférico, era usuária do Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2002, o resultado da gestão da sua saúde reprodutiva pelo Estado foi morte. Em 2011, o caso de Alyne foi internacionalmente reconhecido como o primeiro de violação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres pelas Nações Unidas.
Escrito pela antropóloga Kia Lilly Caldwell, Health Equity in Brazil: Intersections of Gender, Race, and Policy [Equidade em Saúde no Brasil: interseções de gênero, raça e política] toma o caso de Alyne como seu fio condutor: primeiro, para compreender como as desigualdades raciais em saúde podem se materializar na vida cotidiana; segundo, e foco central do livro, como políticas públicas de equidade racial em saúde foram institucionalizadas no Brasil, por quase quarenta anos, pelo “movimento de mulheres negras” – assim ela nomeia as principais organizações e lideranças do feminismo negro brasileiro.
Professora da University of North Carolina at Chapel Hill, Caldwell tem como agenda de pesquisa o ativismo de mulheres negras, em especial na América Latina. Nesse livro, ela analisa a construção histórica e política da saúde pública brasileira focalizada na população negra, no contexto que a autora denominará de “race-conscious public policies” [políticas públicas de consciência racial]. Esse período tem sido interpretado pela literatura das relações raciais como aquele em que o Estado passou a adotar um discurso de reconhecimento das desigualdades raciais e institucionalizar políticas públicas voltadas a mitigar tais desigualdades. Uma postura estatal que apenas foi possível a partir de uma trajetória de relação entre Estado e movimento negro (Paschel, 2016). É importante destacar que esse momento está associado a maior interferência no Estado pelos movimentos sociais, a partir da redemocratização (Lavalle et al., 2019). A construção de políticas afirmativas no campo da saúde pública coube ao feminismo negro e foi central à sua constituição (Lima e Rios, 2019). Nessa área, tal processo é conhecido como focalização da saúde na população negra.
Em seis capítulos, a autora nos indica que a focalização ocorreu pela circulação dessas lideranças entre o movimento feminista e o movimento negro. Em conjunto com o movimento feminista, houve o ativismo pela construção dos direitos sexuais e reprodutivos, e com o movimento negro, a luta antirracista. Um ativismo contínuo perante o Estado, antes, durante e após a redemocratização: ora por fora das instâncias burocráticas, ora por dentro delas, em paralelo à institucionalização de um SUS universal e descentralizado, pelo movimento sanitarista.
No decorrer da obra, compreende-se em minúcia o “ativismo institucional” (Abers e Tatagiba, 2015) pelas ativistas negras para focalizar a saúde pública. Paralelamente, Caldwell sintetiza as políticas focais que se institucionalizaram, entre 1988 e 2014 – o foco do capítulo 3. Ela nos permite entender, mais do que um mapeamento de políticas, o modo como as delimitações à focalização foram construídas: a perspectiva de cuidado integral à saúde das mulheres, os desfechos mais reincidentes na população negra a serem monitorados (por exemplo, HIV/Aids, doença falciforme, mortalidade materna), a sistemática produção de estatísticas estatais. Dessa forma, ela condensa processos políticos que levaram à legalização, em 2009, da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), pela Portaria do Ministério da Saúde n. 992, de 13/05/2009.
A análise ganha a seguinte organização na obra: os dois primeiros capítulos podem ser lidos em conjunto, pois indicam como a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, desde 1980, é o ponto de partida para a atuação das organizações do feminismo negro no Estado, marcando o início da construção de uma saúde focalizada, legalizada apenas em 2009. Dessa leitura, evidencia-se que o ativismo das feministas negras foi orientado pela circulação transnacional delas. Primeiro, uma atuação por fora das instâncias burocráticas, orientada pelos achados pioneiros dos estudos demográficos de Elza Berquó sobre as desigualdades raciais em saúde reprodutiva. Depois, um ativismo por dentro das instâncias burocráticas e a partir das estatísticas estatais das desigualdades.
A singularidade do primeiro capítulo é mostrar a mudança da perspectiva estatal de cuidado da saúde das mulheres pelo feminismo. Em contraste ao controle da natalidade, que recaía em mulheres negras e pobres, adota-se, legalmente, uma perspectiva integral à saúde das mulheres, que estabelece cuidados amplos e em todas as fases de vida. A distinção do capítulo seguinte é a análise sobre como o feminismo negro introduziu outra perspectiva na saúde, a interseccionalidade.
Também merecem leitura sucessiva o quarto e o sexto capítulos. A estratégia da antropóloga é a análise de ações específicas da focalização para ilustrar os desafios da implementação desta em pormenores. No quarto capítulo, é interessante o movimento pendular que ela faz entre os níveis federativos para analisar o Programa de Combate ao Racismo Institucional (2001) e a coleta da raça/cor dos usuários do SUS (continuamente normatizada, desde 1996). Cada uma dessas ações é analisada a partir de experiências municipais (Recife, Salvador, São Paulo). No sexto capítulo, os desafios são identificados por meio do Programa Nacional de DSTs e Aids, quando são bem expostas as tensões entre os princípios da universalidade e da equidade do nosso SUS, apesar de legalmente complementares.
Eu recomendaria que a leitura da obra se iniciasse pelo quinto capítulo, pois nele a antropóloga nos leva à concretude da interseccionalidade das desigualdades em saúde. Ela repassa o desfecho de morte por gravidez de Alyne para ilustrar os limites de um sistema público de saúde gerido, principalmente, pela universalidade. Esse caso sintetiza os processos amplos subjacentes à construção da focalização: a persistência das desigualdades raciais em saúde num quarteto (mulher, negra, pobre, moradora de periferia), a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos e pela gestão pública de qualidade destes, o trânsito das lideranças do feminismo negro entre as instituições nacionais e internacionais na legalização desse direito, continuamente perante o Estado.
Caldwell foi certeira ao finalizar a obra alertando para as transformações políticas em direção ao espectro conservador. A agenda de pesquisa que ela provoca é a análise da relação entre essas mudanças e as formas de continuidade de uma saúde pública focalizada; uma agenda que se impõe às diversas esferas dos direitos sociais institucionalizados na redemocratização. De fato, as transformações internas e cotidianas do Estado para administrar políticas voltadas ao combate das desigualdades raciais e seu oposto, as modificações para esvaziamento dessa gestão, são temas em aberto atualmente no campo das relações raciais.
Em síntese, a antropóloga norte-americana condensa aspectos da focalização da saúde na população negra. A obra avança em evidenciar que uma institucionalização da governança da saúde de negros foi arduamente construída pelo feminismo negro em espaços de poder estatais, especialmente em burocracias de gabinete. Talvez, valesse avançar na análise sobre essa institucionalização em burocracias da ponta do SUS, partindo de uma perspectiva fragmentada de Estado (Sharma e Gupta, 2006). Como conclui Caldwell, é necessário analisar a reverberação da focalização dentro do próprio Sistema. Eu sublinharia maior esforço analítico em torno das burocracias do “guichê” (Dubois, 2010). Como ocorre a construção da focalização em burocracias que se relacionam diretamente com os usuários, majoritariamente negros, que estão mais distantes do processo institucional? Como dinâmicas locais reproduzem ou minimizam desfechos como o de Alyne?
Referências bibliográficas
Abers, R. N.; Tatagiba, L. “Institutional Activism: Mobilizing for Women’s Health from Inside the Bureaucracy”. In: Rossi, F. M.; Bulow, M. Social Movement Dynamics: New Perspective on Theory and Research from Latin America. 1. ed. Nova York: Ashgate, 2015, pp. 73-101.
Dubois, Vicent. The Bureaucrat and the Poor: Encounters in French Welfare Offices. Londres: Routledge, 2010.
Lavalle, Adrian Gurza et al. (org.). Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2019.
Lima, Márcia; Rios, Flávia. “O feminismo negro no Brasil: desafios e estratégias de consolidação de uma agenda política na área da saúde”. In: Blay, Eva Alterman; Avelar, Lúcia; Rangel, Patrícia (orgs.). Gênero e feminismos: Argentina, Brasil e Chile em transformação. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2019.
Paschel, T. S. Becoming Black Political Subjects: Movements and Ethno-Racial Rights in Colombia and Brazil. Princeton: Princeton University Press, 2016.
Sharma, A.; Gupta, A. (orgs.). The Anthropology of the State: A Reader. Oxford: Blackwell Publishing, 2006.
Jaciane Milanezi é pós-doutoranda no Programa Internacional de Pós-Doutorado (IPP/Cebrap) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial (Afro/Cebrap). Pesquisa as interfaces entre raça e saúde pública. Defendeu, em 2019, a tese Silêncios e confrontos: a saúde da população negra em burocracias do Sistema Único de Saúde (SUS).
Capa do livro Health Equity in Brazil, de Kia Lilly Caldwell. Fonte: University of Illinois Press.