O seminário “Cebrap 50 anos, obras fundamentais” de novembro foi dedicado à obra da demógrafa Elza Berquó. Junto com Magda Isabel (UFSCar) e Tania Lago (Santa Casa), Maria Andrea Loyola, socióloga do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), participou da mesa “Elza Berquó e as rupturas nos estudos de reprodução e raça”. Em sua apresentação, M. Andrea Loyola comentou o impacto provocado pela pesquisa sobre reprodução humana coordenada por Elza Berquó.
Primeiramente gostaria de agradecer ao Cebrap o convite para participar deste seminário que comemora os 50 anos desta instituição que tão generosamente me acolheu quando, em 1974, voltei do exílio imposto pelo golpe militar. E aqui tive a chance de trabalhar na Pesquisa Nacional sobre Reprodução Humana idealizada e coordenada por esta grande demógrafa que é Elza Berquó.
E é sobre essa pesquisa que me encarregaram de falar nesta mesa, em apenas 25 minutos. Tarefa evidentemente impossível, devido à sua extensão. Um único olhar para o imenso volume de publicações que ela gerou, atualmente disponíveis na Biblioteca Virtual do Cebrap (http://bibliotecavirtual.cebrap.org.br/), me fez parecer aquela professora de história do Millôr Fernandes que era tão velha, tão velha, que para dar aula não precisava estudar, bastava recordar. Claro que estou longe de ter a idade da professora do Millôr. O que quero dizer é que o que vou falar assenta-se em grande parte em minha memória. Optei, primeiramente, por ressaltar alguns dos resultados mais importantes dessa pesquisa; em seguida, abordar alguns aspectos de minha participação e, por fim, como essa minha quase primeira experiência profissional direcionou e marcou profundamente minha carreira e minha produção acadêmica.
Em meados de 1970, quando a pesquisa de Reprodução Humana (RH) foi elaborada e foi a campo, a taxa de fecundidade no país era de 5,8 filhos por mulher. Hoje registra uma média de 1,8; portanto abaixo daquela necessária para a reposição populacional, que é de 2,1 − naturalmente, com variações regionais. Se quisermos saber como esse processo de transição demográfica ocorreu e sob que influências, incontornável mencionar a pesquisa de RH, pois estamos falando de uma pesquisa absolutamente atual em suas propostas e cuja amplitude e qualidade justificam plenamente a frase com que os mais velhos costumam referir-se à sua experiência: não se fazem mais pesquisas como antigamente. E não se fazem mesmo.
Em primeiro lugar trata-se de uma pesquisa extremamente ambiciosa e audaciosa, meticulosamente preparada e discutida, que contou com a participação, sob a batuta da Elza, de uma equipe multidisciplinar.
Apoiada em um referencial teórico amplamente discutido e em uma metodologia extremamente completa e sofisticada, essa pesquisa significou uma ruptura com os estudos de fecundidade então realizados na América Latina.
Para explicar os diferenciais de fecundidade encontrados nas diferentes regiões consideradas, esses estudos em geral se apoiavam na dicotomia tradicional-moderno. Já a pesquisa de RH buscou vincular os achados demográficos, perseguidos e encontrados, com o contexto histórico-estrutural em que os atores desempenhavam seus papéis.
Não podemos nos esquecer de que estávamos na década de 1970, portanto sob a hegemonia teórica do marxismo e, assim, nada mais natural do que a pesquisa de RH ter como principal objetivo explorar as relações entre o comportamento reprodutivo e as diversas formas de organização da produção presentes no Brasil.
Para tanto, um conjunto de áreas brasileiras foram estudadas considerando a maneira como se estruturavam as formas dominantes de organização da produção, as formas de inserção de cada região na divisão social do trabalho durante seu processo de desenvolvimento e como, em cada uma delas, se constituíam e se relacionavam as diferentes classes sociais.
Nesse sentido, foram construídas tipologias de 30 áreas urbanas e rurais, reduzidas ao final a nove, então denominadas “pontos” da pesquisa: São José dos Campos (SP), representando o capitalismo monopolista; Recife (PE), Sertãozinho (SP) e Cachoeiro do Itapemirim (ES), os diferentes tipos de capitalismo concorrencial; Santa Cruz do Sul (RS) e Parnaíba (PI), área rural e área urbana, a produção simples de mercadoria; e Conceição do Araguaia (PA), a servidão rural.
Tomada a área como unidade de análise, o estudo macroestrutural visou ao conhecimento de sua história econômica e social, da dinâmica demográfica de sua população e da função que as diversas instituições (religiosas, de saúde, educação, a unidade produtiva, a mídia etc.) pudessem ter nos processos de decisão relativos à reprodução humana.
Do ponto de vista metodológico, a pesquisa de RH significou ainda uma outra ruptura com as antigas pesquisas sobre fecundidade. Enquanto aquelas tinham como foco apenas as mulheres unidas em seu período reprodutivo, a pesquisa de RH incluiu os homens (considerando que eles também participavam das estratégias de reprodução da família), as mulheres solteiras e com idades que variavam de 15 a 50 anos completos, o que permitia observar essas estratégias de uma forma sincrônica e diacrônica.
Um vasto repertório de métodos e técnicas de coleta de dados foi utilizado: além de um estudo amostral (survey) feito a partir de um questionário prévia e amplamente discutido, foram usadas fontes secundárias, observação direta, entrevistas focalizadas realizadas com informantes qualificados e entrevistas em profundidade, com informantes de ambos os sexos e de diferentes faixas etárias.
O estudo das instituições sociais significou outro avanço teórico e metodológico de grande envergadura e importância para a época. A teoria marxista tal qual interpretada aqui no Brasil naqueles anos pressupunha que o comportamento humano, assim como a cultura e as formas de pensar eram determinados mecanicamente pelas relações de produção ou, para usar uma terminologia da época, que a infraestrutura determinava a superestrutura.
O estudo das instituições sociais na pesquisa de RH, introduzido pelo Procópio Camargo e, com seu falecimento precoce, colocado sob minha responsabilidade, foi pensado e desenvolvido como uma forma de mediação entre essas duas esferas. Sem a introdução desse estudo e na forma como foi pensado, teria sido impossível explicar ou entender as estratégias de reprodução observadas.
De fato, considerar as instituições como mediações implicava não isolá-las no nível da superestrutura, considerá-las como aparelhos de Estado ou como meros instrumentos de dominação de classe, como fazia o marxismo da época, mas considerá-las também como princípios de legitimação dessa dominação, pela função que exerciam de imposição da cultura dominante e como máscaras das relações de classes, o que se fazia, não só através de um poder tradicional ou de um aparelho de Estado, mas principalmente pelo conjunto de pequenos poderes, de saberes organizados e especializados, ou seja, pelas instituições.
Elas eram também vistas como tendo características específicas, uma história autônoma e uma lógica de evolução própria. Não se podia dizer, por exemplo, que a mediação desempenhada pela Igreja era da mesma ordem que aquela representada pelas instituições de saúde ou ainda pela escola. Elas contribuíam para impor categorias e estruturas de dominação, mas também sofriam e absorviam as pressões vindas da base.
Nessa pesquisa foram usados os mesmos instrumentos de coleta de dados da pesquisa mais geral: entrevistas com agentes institucionais, com homens e mulheres aleatoriamente escolhidos e um questionário que listava uma série de circunstâncias, tais como: quando ter filhos, quantos filhos ter, como evitar filhos, como fazer no caso de não conseguir ter filhos, o que fazer se ficasse grávida e não estivesse certa de se deveria ou não ter o filho, e a que tipo de pessoas recorreria para isso: padre, irmã, pastor, pai ou mãe de santo; médico; farmacêutico, comadre, compadre, vizinho, amigo, patrão; assistente social, psicólogo, livros, fontes especializadas etc.
Mais de um agente era citado, mas, em todos os pontos, o médico ou representantes das instituições de saúde eram mencionados em primeiro lugar. Com variações por pontos, que, por uma questão de tempo, não cabe mencionar agora.
Vou me limitar a citar como exemplos dois pontos − São José dos Campos e Parnaíba − nos quais participei pessoalmente da coleta de dados, juntamente com a Maria da Conceição Quinteiro, a Quim, que coordenou a pesquisa de campo nos demais pontos estudados.
Além de variações relativas às instituições, esses pontos ilustram bem as principais hipóteses da pesquisa. São José dos Campos, situada no entroncamento Rio-São Paulo, representava, como dito, o moderno capitalismo brasileiro impulsionado pelas forças do grande capital oligopolista que ali se instalara, principalmente a partir dos anos 1950. Grandes empresas multinacionais como Embraer, Siemens, Johnson & Johnson, Nestlé, para citar apenas algumas, funcionavam em São José quando lá estivemos.
Na época, a taxa de fecundidade da população de São José girava em torno de 4, mas o número de no máximo 3 filhos já era tido como ideal pela quase totalidade das pessoas que entrevistamos, sendo a pílula anticoncepcional amplamente difundida entre a população. Segundo o depoimento dos farmacêuticos, ela encabeçava a lista dos medicamentos mais vendidos na cidade.
Além dos agentes de saúde, e daqueles mais modernos, como assistentes sociais e psicólogos, que atuavam nas grandes empresas, São José se distinguia, notadamente, pela influência das próprias empresas sobre o comportamento reprodutivo: através do mercado e principalmente das condições de trabalho − horário de trabalho obrigatório, impossibilidade de se fazer acompanhar por filhos menores, alta probabilidade de admissão e/ou demissão no caso da mão de obra feminina, em função do casamento e da gravidez; aí incluindo o agravante da praticamente inexistência de creches naquela época.
Parnaíba, que, juntamente com Santa Cruz do Sul, representava a produção simples de mercadoria, já era, na época que a visitamos, completamente esvaziada pela decadência da economia primário-exportadora e do transporte fluvial e marítimo que a caracterizaram até a década de 1950.
Sua zona rural apresentava uma estrutura fundiária de pouca expressão comercial ligada a uma ampla agricultura camponesa. As produções comerciais eram principalmente carnaúba e gado bovino; e a forma de trabalho mais difundida, a parceria, na verdade, o arrendamento, que torna o rendeiro ou aquele que aluga a terra dependente do dono da terra em praticamente tudo, tanto para o crédito quanto para a as sementes, adubos, alimentos e a comercialização do produto.
A economia urbana era estreitamente vinculada a essa economia comercial latifundiária de subsistência ou camponesa. O que proliferava em Parnaíba era a intermediação autônoma na circulação de mercadorias em que intervinha um número considerável de pessoas. Uma mesma mercadoria poderia passar por vários compradores/vendedores num percurso tão curto quanto entre a periferia e o centro da cidade, o que em Parnaíba não significava grande coisa. Em 1970, Parnaíba contava com apenas 80 mil habitantes.
Outro fator importante na manutenção do “emprego” e possibilidade de subsistência de um quadro numeroso de trabalhadores desempregados e de sobrevivência de parte do comércio local era o setor público, notadamente os órgãos assistenciais e de previdência.
O “encosto” pelo INPS (o INSS da época) por motivos de saúde, planejado e acordado com os médicos, era uma estratégia abertamente narrada, tanto pela população como pelos agentes de saúde. Em cada ano era um membro da família que se encostava, geralmente por problemas mentais cujos sintomas todos sabiam representar.
E era exatamente através desse órgão, ou seja, do INPS, que o controle da natalidade se exercia com toda força, tanto através da distribuição de pílulas, que grande parte da população rural não sabia usar e principalmente através da ligadura de trompas, companheira dos partos por cesarianas, executados com ou sem o acordo das mulheres (em geral, a pedido delas) após certo número de filhos, habitualmente mais de 4.
A justificativa, tanto dos médicos como de praticamente todos os agentes institucionais entrevistados, era de que o elevado número de filhos das famílias de Parnaíba era o responsável pelo estado de pobreza em que vivia sua população.
De fato, todas as mulheres entrevistadas, quanto perguntávamos quantos filhos elas tinham, respondiam “só 6, só 8, ou só 9”, quando tinham menos de 10 filhos; e “já tenho 11, 14, 15”, quando ultrapassavam o número de 10. A taxa de fecundidade em Parnaíba na época era de 6,5 filhos, padrão equivalente àquele em vigor em uma agricultura camponesa desprovida de tecnologia, apoiada apenas na mão de obra familiar E esse contingente estava sujeito a uma alta taxa de mortalidade infantil, o que justificava a necessidade de garantir o estoque necessário de força de trabalho através da natalidade.
A explicação de que o número de filhos era em grande parte responsável pela pobreza existente em Parnaíba era compartilhada por quase todos os agentes, inclusive pelos agentes religiosos, que, embora abertamente pregassem a filosofia do “crescei e multiplicai-vos”, assumindo posições contrárias à pílula, veladamente se utilizavam do conceito de paternidade responsável para adotar uma posição controlista.
Mesmo os agentes educacionais de Parnaíba apresentavam uma atitude controlista mais acentuada do que em outros pontos.
Os meios de comunicação de massa, semelhantemente à escola, atuavam de forma indireta, mas mais efetiva, através dos apelos ao consumo e dos modelos de família e comportamentos implícitos, nas novelas, publicidades, filmes etc.
De modo geral, a pesquisa de RH não se coaduna com o que certos antropólogos da saúde no Brasil vêm afirmando, ou seja, que a transição demográfica se deu contrariamente ao desejo e opinião das mulheres. Em praticamente todos os pontos e nesses em que participei diretamente, a maior parte das mulheres, para não dizer quase todas que eu e Quim entrevistamos, se não eram de forma explícita a favor do controle da natalidade, eram explicitamente favoráveis a um número menor de filhos. Geralmente, aquele associado à família conjugal moderna: pai, mãe e dois filhos, de preferência um casal.
Em sua proposta teórica que enfatiza os modos de produção, a dominação e as relações de classe, a pesquisa de RH pode parecer envelhecida e sem sentido para explicar o que vem ocorrendo na sociedade moderna.
Esses conceitos podem, sim, ter envelhecido e saído de moda. Mas os fenômenos que eles descreviam, embora historicamente redesenhados, permanecem extremamente vivos e perturbadores: os diferentes modos de organização da atividade econômica, as formas cada vez mais modernas de extração da mais-valia, o avanço e o aprofundamento das desigualdades sociais, e a forma selvagem de acumulação capitalista existente no país podem exigir novos conceitos para apreendê-los, e eles existem. Mas não deixaram de atuar. E só podemos compreender a reprodução humana, tal como proposta pela pesquisa de RH aqui em pauta, se os levarmos em consideração.
Além dos estudos econômicos, demográficos e institucionais sobre os quais não podemos nos estender aqui para além dessas rápidas pinceladas, a pesquisa sobre RH produziu dados que possibilitaram outros estudos pioneiros e fundamentais para o entendimento da sociedade contemporânea. Por exemplo, o estudo sobre a divisão doméstica do trabalho realizado por mim, com a colaboração de Marcia Abujamra, mostra que, com variações contextuais, a dupla jornada de trabalho da mulher constituía uma constante em todos os pontos da pesquisa.
Ou o estudo sobre homogamia e formas de união dos sexos, realizados pela Elza e por mim, que mostra como as uniões realizadas a partir do amor romântico e da escolha individual, longe de liberarem o indivíduo dos grilhões da classe social, como pretende a teoria individualista, levam-no inconscientemente a reproduzi-las: dentre as uniões estudadas, a quase totalidade delas era homogâmica, ou seja, realizada dentro de uma mesma categoria social.
Sem contar os numerosos estudos da Elza que esmiuçavam as transformações ocorridas no casamento, as separações e os recasamentos, que a levaram a criar a famosa pirâmide da solidão, caracterizada por situar no topo mulheres sozinhas, cujos maridos faleceram ou voltaram a se casar com mulheres mais jovens.
De grande importância e pioneirismo foram os estudos sobre sexualidade realizados a partir da pesquisa de RH, antes ainda do advento da Aids que os popularizou.
Particularmente, dediquei-me a examinar a relação entre reprodução e sexualidade, para tanto tendo sido levada a desenvolver um esquema teórico-explicativo que serviu de guia para as inúmeras pesquisas que desenvolvi, juntamente com meus alunos no Instituto de Medicina Social da UERJ, onde criei um grupo para estudar as relações entre reprodução biológica e social. Foi lá que, sob minha inspiração e orientação foi defendida a primeira tese sobre reprodução assistida no Brasil, trabalho pioneiro, cuja autora, Marilena Corrêa, tornou- se uma grande especialista no Brasil e no exterior.
Poderia citar inúmeros outros estudos ligados ao tema da reprodução que direta ou indiretamente foram inspirados nessa aventura intelectual bem-sucedida que foi a pesquisa de RH do Cebrap.
Mas acho que o livro Bioética: reprodução e gênero na sociedade contemporânea (Letras Livres/Abep, 2005) –, patrocinado pela Abep (Associação Brasileira de Estudos Populacionais) e que reúne trabalhos apresentados no XIV encontro daquela associação, resume e exemplifica de forma emblemática o significado desse tema. É o que assinala Maria Coleta de Oliveira, na apresentação que fez dele, chamando a atenção para o retorno do tema da sexualidade à Abep, altamente criticado quando introduzido pela Elza e por mim nos anos 1980.
Esse livro ressalta a importância da reprodução na compreensão de conceitos fundamentais para o comportamento reprodutivo na sociedade contemporânea, como gênero, casamento, amor, relação entre os sexos, filiação, entre outros. Temas cuja coerência – mostra, com clareza, um vasto conjunto de autores que dele participaram (antropólogos, sociólogos, juristas, médicos, demógrafos e psicanalistas) – advém do fato de serem solidários a uma forma de reprodução social e biológica dominante na sociedade contemporânea.
Como organizadora desse livro, acho que posso dizer que ele não deixa de ser um neto, chegando à idade adulta, das rupturas realizadas pela Elza a partir da pesquisa de Reprodução Humana do Cebrap.
Maria Andrea Loyola é socióloga do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).