Oswaldo Corrêa Louzada Filho nasceu em 1943, em São Paulo. Em 1959, iniciou a publicação de trabalhos de crítica literária e ensaios no “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo, colaboração que perdurou até 1974. Em 1962, recebeu o Prêmio Estímulo de ensaios da Comissão Estadual de Literatura pelo trabalho Uma topografia do absurdo (sobre a obra de Albert Camus) e, em 1963, menção honrosa do Prêmio Governador do Estado pelo romance A terra e o sangue, não publicado. Colaborou com crítica literária e ensaios em diversos periódicos (Folha Ilustrada, Caderno 2, Cultura-OESP, Ideias-JB, Leia Livros, entre outros) e revistas de cultura (Encontros com a Civilização Brasileira, Tempo Brasileiro, Almanaque, Arte em Revista, Ficções, entre outras). Foi professor da Faculdade de Artes Plásticas e Comunicações da FAAP (1969-1973) e correspondente colaborador do Jornal da Tarde para assuntos culturais em Paris (1973).
Publicou os livros Dardará (romance, 1965), Perspectivas (ensaios, 1970), Diário de bordo (romance, 1975), A luz do dia (romance, 1977), Crítica e tempo, (ensaios, 1981), Repertório, Opus 5 (novela, 1982), Alcoólatra com ovo (novela, 1989), Mocó (narrativas, 2001), :Espelho Esquerdo (narrativas, 2016).
A entrevista a seguir foi realizada em 17 de outubro de 2015. Oswaldo Louzada faleceu em março de 2017.
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Fernando Vidal Filho:
Você começou a publicar no “Suplemento Literário” do Estadão…
Oswaldo Corrêa Louzada Filho:
Na verdade um pouco antes, em uma revista chamada Espiral. Só saíram dois números. No Suplemento do Estadão foi em 1959, uma resenha da Crônica da casa assassinada do Lúcio Cardoso. Eu tinha de 15 para 16 anos.
FERNANDO:
E quem te chamou para publicar no Suplemento?
OSWALDO:
O negócio foi o seguinte: eu li o livro, escrevi a resenha e falei com o Roberto [Schwarz], que fez a ponte com o Décio [de Almeida Prado]. O Décio ficou com o texto um mês, mais ou menos, lendo. Então aprovou e a resenha foi publicada. Os primeiros textos todos ficavam um tempo com o Décio, ele lia, aprovava e publicava. Chegou um determinado ponto, talvez o artigo sobre Camus [Uma topografia do absurdo, 1960-61], ele disse: agora não precisa mais submeter, escreveu saiu. O Suplemento durou até 73, se não me engano, com aquela interrupção que houve, quando mudou a sede do Estado. Durante todo esse tempo eu escrevi lá. Escrevia uma coisinha ou outra no JB também, tudo crítica e ensaio. No Estado também publiquei um conto, Capacete sob o sol.
FERNANDO:
Você começou escrevendo crítica ou já escrevia ficção?
OSWALDO:
A ideia sempre foi escrever ficção. Aí escrevi A Terra e o Sangue, com o qual concorri ao Prêmio Estímulo (Prêmio Governador do Estado). A comissão era presidida pelo Anatol [Rosenfeld], que me deu menção honrosa, mas o livro não foi publicado. Está guardado. Isso foi por volta de sessenta e poucos. Aí havia duas coisas. Primeiro, o universo rural e, segundo, já começava a aparecer a questão do nouveau roman, quer dizer, as longas frases e descrições. O livro tem grandes defeitos de estrutura, mas ao mesmo tempo saíram algumas coisas de lá. Alcantis, por exemplo, foi criado ali, como região imaginária. A influência era Yoknapatawpha County, do Faulkner…
FERNANDO:
O que você lia nessa época?
OSWALDO:
Ah, tudo! Tem aí atrás de você, por exemplo, um Manual de Economia Política da Academia de Ciências da União Soviética… Tem o livro do [Antonio] Candido, o livro do Roberto, A sereia e o desconfiado, que saiu no mesmo ano que Dardará, 1965. Lia Stendhal, Faulkner, Sartre, Camus, Guimarães Rosa. Me lembro de ter comprado a primeira edição do Grande Sertão, em 1958.
FERNANDO:
São autores que aparecem no seu primeiro livro de ensaios, Perspectivas.
OSWALDO:
Sim, era um universo! Eu não sei… Enfiei na cabeça, quando era criança, que queria ser escritor. E ainda nem sabia escrever. Lá em São Vicente, descobri uma pedra na praia. Levei a pedrona pra casa e saiu “A História de uma Pedra”. Como eu não sabia escrever, ia contando e minha tia ia anotando. Mas já era a maluquice que tinha se instalado: escrever. Começou aí; eu tinha 5, 6 anos, sei lá.
FERNANDO:
Depois, na adolescência, quando você estava no colégio, aí sim começou a ler os autores de que falamos. Mas também tinha a convivência com outras pessoas com os mesmos interesses, não?
OSWALDO:
Também, claro! Aí teve a Maria Antônia. Eu estudava no Mackenzie, que era do lado, e estava sempre lá, convivendo com o pessoal: o Décio [de Almeida Prado], o Bento [Prado Júnior], o Roberto [Schwarz]. Eles eram um pouco mais velhos do que eu. Era uma convivência constante. O clima era totalmente, digamos, existencialista… taí o Bento que não me deixar mentir. Aí é que entrava muito Sartre. Para mim foi uma descoberta ler a primeira edição portuguesa de O Muro, acho que em 1959. Logo em seguida, A Idade da Razão. Camus eu já comecei a ler em francês.
Naquela época, tudo era muito rico culturalmente. Foi a época do concretismo, da Revista Noigandres dos irmãos Campos; foi a época do Instituto Brasileiro de Filosofia de Vicente Ferreira da Silva, que tinha aquela revista Diálogo, que era muito mal vista, porque era considerada de direita. Mas o próprio Candido escreveu nela. Eu tinha a coleção, mas agora não acho. Estou tentando ver se consigo algum exemplar. Tinha muita coisa boa. Sei que reeditaram o Vicente Ferreira da Silva, mas é só filosofia. Só que na Revista tinha também literatura, poesia… aí já entrava Elliot, Yeats, Keats, e brasileiros também, como Dantas Mota. Era um universo…
Havia as artes plásticas também. Foi a época em que apareceram os happenings. E juntinho de tudo chegou o João Sebastião Bar, que era fundamental. Era onde a Claudete cantava. Como eu era cupincha dela, conseguia entrar todo sábado fácil. Foi quando aprendi a tomar uísque com água de Lindoia. Eu não tinha dinheiro pra tomar mais do que uma ou duas doses e ia esticando, chegava lá pelas dez da noite e saia às quatro da manhã.
FERNANDO:
E a política?
OSWALDO:
Na época, eu era da Liga Socialista Independente (LSI); era espartaquista, com Michel Löwy… E tinha o CKM, Centro Karl Marx, onde o Paul Singer dava aula de economia política. Só em 1968 é que eu me tornei ALN (Ação Libertadora Nacional). Aí veio Marighella…
Em dezembro de 1968 veio o AI-5 e eu fui depor na Polícia Federal. Publicava-se nessa época a Revista Aparte. E todo mundo da revista foi depor. Uns quatro ou cinco não foram presos, entre eles, eu. Convivia muito com o Ricardo Othake, que é muito meu amigo até hoje. Foi a época realmente de militância. Eu era considerado representante da guerrilha na Mauá. Eu já estava estudando engenharia, mas não estudava nada. Eu ia lá, mas… bom, aprendi algumas coisas, como fabricar explosivos e coisas assim.
FERNANDO:
Depois dessa vez que você foi depor não teve mais nada com a polícia?
OSWALDO:
Não, não. Nesse depoimento eu tive uma grande vantagem, porque o escrivão, quando viu que eu escrevia no Estadão, passou a me olhar com outros olhos, mais brandos. E a coisa ali não foi tão violenta. Foi um depoimento simples, não teve maiores pepinos. Mas lembro que na noite em que saiu o AI-5 eu estava assistindo TV – estava morando na casa do meu pai – e disse: eu vou embora, tenho que sair daqui. “Que embora daqui coisa nenhuma!” ? ele pegou uma winchester ? “se entrar eu apago!” Tá bom. Fiquei. O negócio de depor foi depois.
FERNANDO:
Mas voltemos à sua atividade como autor de ficção.
OSWALDO:
No comecinho de 1964 eu comecei a escrever Dardará. Aí há uma coisa importante. Eu tinha assistido e resenhado La dolce vita, de Fellini, para o Suplemento. Quando veio Oito e Meio, fui assistir lá na Galeria Metrópolis e foi uma cacetada. Saí absolutamente abalado. Dá para perceber que o início de Dardará é baseado no Oito e Meio. “Eu me pergunto se todas as palavras já não foram ditas e se ainda haverá algo a dizer…”.
A coisa foi se desenvolvendo e começou uma bela mistura. Primeiro, essa inspiração que veio de Fellini; a forma de nouveau roman, com frases longuíssimas, com parênteses pra tudo quanto é lado; e também algo que foi fundamental: a cultura africana. Vem daí a frase em iorubano, que é como que o motivo central do livro e quer dizer: “a tartaruga não tem o sangue de uma mancheia”.
Ao mesmo tempo, quem narrava era personagem também, o engenheiro. O engenheiro, embora citadino, estava no campo desenvolvendo uma estrada, e a estrada tinha que passar por um quilombo para construir uma ponte. Ora, o engenheiro ? o que lembra as omissões de Guido em Oito e Meio ? era um canalha absoluto: “não tenho porra nenhuma a ver com isso, bota trator em cima”. E o livro acaba num verdadeiro massacre dos quilombolas.
Tem bastante de cultura africana misturada com todas essas outras referências. Então, eu estava tentando pegar um universo de coisas, de determinantes, que me parece bastante amplo. Dito assim, talvez não faça sentido, mas no livro acho que faz, sim.
FERNANDO:
Essa figura do engenheiro aparece bastante no seu trabalho…
OSWALDO:
É porque meu pai tinha uma construtora e enchia o saco para eu estudar engenharia. Aí entrei na Mauá e não fazia porra nenhuma. Trabalhei em obras e tive contato com o pessoal da construção civil, peão, e todo esse universo da engenharia. A gente era amigo de Oscar Niemeyer…
FERNANDO:
Esse universo reaparece, por exemplo, num texto que vem bem depois, o Alcoólatra com Ovo…
OSWALDO:
Aí é que está. O Alcoólatra com Ovo retoma Alcantis, uma região rural, que está em A Terra e o Sangue, e o engenheiro, que é um cara correto que se ferrou com a repressão e vive de topografia. Ele é explorado por aquele Souza, que através de relações governamentais arruma serviços de topografia. O que na verdade é um pretexto para grilar a fazenda do Seu Eustáquio. Agora, o local, que é Alcantis, já era o Vale do Paraíba desenvolvido ou no início do desenvolvimento. É a época da industrialização do Vale do Paraíba, que já tinha começado um pouco antes da ditadura, quando constrói-se a General Motors, a Detroit Diesel etc., um monte de fábrica, Ericsson etc. Uma dessas companhias é que quer se apossar das terras do fazendeiro Eustáquio e usa o topógrafo para isso, que usa o engenheiro para fazer o levantamento. Depois o pessoal descobre.
FERNANDO:
Mas voltando um pouco, como foi a recepção de Dardará?
OSWALDO:
Acho que houve mal-entendidos. Por exemplo, já no posfácio, o [Mario] Chamie apresenta o engenheiro como o “herói que enfrenta o impasse”. Ora, enfrentar o impasse é destruir o quilombo! Na verdade, o engenheiro era um filho da puta, um destruidor, só que ele inverteu a coisa: apresenta como positivo o que era negativo. Não entendeu porra nenhuma. De resto, as outras críticas eram todas formalistas, babacas, não saiu nada, nada. Realmente, eu não lembro de nada que levasse em conta o que de fato era o livro. Era um conto de fadas, era tudo questão formal.
FERNANDO:
Depois de Dardará veio o Diário de bordo.
OSWALDO:
Aí o pior foi o seguinte: nós estávamos em plena ditadura, né? O livro foi escrito em três meses, no início de 1973. Deixa eu contar o que me cutucou. Eu passei um mês em Paris e lá, xeretando o Nouvel Observateur, vi a notícia do lançamento do Anti-Édipo. E a ideia de capitalismo e esquizofrenia me animou. Na mesma noite fui comprar e li inteirinho. Aí veio a ideia de escrever um livro. Foi quando me separei do primeiro casamento. Eu tinha dito a minha mulher que ia escrever um romance pornoesquisocatastrepico, ou seja, pornográfico, esquizofrênico e épico, coisa que deixou ela horrorizada. Bem, já separado, passei a morar na Frei Caneca uns meses, depois em Pinheiros. Eu estava ainda terminando de dar aula na FAAP e o livro foi escrito num jato. É uma história sobre a repressão.
FERNANDO:
Sim, aí o assunto fica bem claro: é o problema de repressão, as pessoas estão sumindo etc.
OSWALDO:
Exato. O que culmina com o personagem se transformando em paranoico. Ele vira a bandeira do Brasil no hospício, pra adotar aquela bipolaridade do Deleuze: esquizofrênicos revolucionários e paranoicos fascistas. Então a prisão e a tortura transformam ele num paranoico que acha que é a bandeira do Brasil.
FERNANDO:
Você vê continuidade entre o Dardará e o Diário de bordo, apesar das circunstâncias históricas e das referências serem outras?
OSWALDO:
É que o tempo histórico no qual você está enfiado influi muito, então é um tempo já bem diferente. Mas há continuidade, sim. Diário de bordo tem represas, tem fotógrafos, tem a ida a Brasília, embora não fosse usado o nome Brasília. Mas no meio do livro tem um rompimento na narrativa, que é quando ele vai montar aquele negócio de manutenção de barcos na represa. Foi o motivo para a [Editora] Duas Cidades recusar o livro. Quebraria o livro no meio. O Roberto [Schwarz] argumentou que era uma burrice, porque na verdade naquele momento tem um acento poético. Aí muda de tom, quer dizer, daquela presença constante do personagem para uma espécie de refúgio que ele foi procurar na represa, que seria a Guarapiranga.
FERNANDO:
Nesse momento aparecem alguns hippies, inclusive, não? Além disso, há a figura do narrador, um professor…
OSWALDO:
Exato. Há essa quebra intencional. Tem um cara que trabalha com ele que é preso, mas não por motivos políticos…
FERNANDO:
E esse professor está um pouco desarraigado. Ele tem alguma relação com seus alunos, mas leva uma vida meio sem propósito. Por exemplo, a certa altura ele cogita escrever uma tese, mas imediatamente abandona o projeto, diz que não tem saco pra escrever tese, e assim por diante. O que quero dizer é que, ao mesmo tempo em que há uma atmosfera de medo, há também uma atmosfera de tédio.
OSWALDO:
Totalmente.
FERNANDO:
O livro começa assim: “Há uma hora e meia esperava pelo João. Um pé no saco principalmente porque isso me fazia prever como caminharia o trabalho que planejávamos fazer juntos. Se para iniciar a organização de uma pesquisa demora esse tempo, eu imagino a continuação”.
OSWALDO:
Mas na sequência já se preocupa com João, porque todo mundo que desaparecia estava sendo preso ou morto, né?
FERNANDO:
Então agora já não temos mais a figura do engenheiro, que por sua vez tinha algo de um intelectual, como sugeriu a Vilma Arêas no posfácio à segunda edição de Dardará, mas um professor. Nesse sentido, um tipo completamente desatado do mundo da técnica. Tanto que a relação dele com o mundo da técnica é fazer um barco…
OSWALDO:
Exato. Ele faz a manutenção de barcos na represa.
FERNANDO:
E não se trata propriamente de um trabalho, né? Ele não trabalha. E fica à toa, aparecem uns caras que fumam maconha…
OSWALDO:
E o tempo vai passando.
FERNANDO:
Um tempo meio morto, que reaparece num outro texto seu, que acho muito bonito e que se volta a esse período: Ambuyaembo (que sairá nesse volume novo, Espelho esquerdo.)
OSWALDO:
Ele é um trecho de O ovo filosófico, que não está publicado, que foi escrito na época da suposta abertura dos anos 1980. Já dava pra ver que era um grosso trambique. Já que eu citei, me alongo. O ovo filosófico vem de uma experiência alquímica em que o grande cavalheiro de Hermes vai fazer a cocção do ovo filosófico e, de repente, puff: o negócio dá errado. Desse negócio que deu errado acaba saindo uma fumacinha, essa fumaça sobe, toma o céu e vira uma aurora boreal. Isso seria mais ou menos alegórico do que estaria acontecendo aqui.
O Brasil está mudando, mudou tudo, o Tancredo está morrendo e tatatá, tatatá… Na verdade não era nada disso. O Tancredo, aliás, foi um dos maiores trambiques de que eu tenho notícias na história. A indireta do Tancredo. O ovo filosófico, o livro, é isso: pegar uma história política do personagem centrada nesse ponto.
FERNANDO:
O Ambuyaembo, que é parte de um dos capítulos, tem muitos elementos de que você falou: começa com uma longa descrição, uma descrição dos quadros da exposição a que você se referiu, e essa descrição serve como uma espécie de estopim para um processo de rememoração. É a memória desse processo de desarraigamento que está no Diário de bordo, certo?
OSWALDO:
Exato. É uma visita que o professor, que agora já é ex-professor, faz a uma exposição que ocorre num ambiente que é o próprio galpão da FAAP, onde houve aquela exposição do Barroco Brasileiro, os profetas etc. E aí vem a lembrança do tempo em que ele dava aula, da revista Acaé, que seria a revista Aparte, da aluna, dos alunos e da convivência que houve. Só que aí ele está sozinho. E acaba entrando no almoxarifado, se escondendo no almoxarifado.
FERNANDO:
A certa altura dessa rememoração ele fala de “um aprendizado da derrota”.
OSWALDO:
Não sei se é bem uma aprendizagem da derrota, mas é. Na verdade, é.
FERNANDO:
É o lento aprendizado de uma derrota. Foi a isso que me referi: a lentidão… Pois a derrota, para esse personagem, não vem na forma de um golpe violento. O mundo desaba ao lado dele, mas ele não toma uma porrada. Inclusive, há um momento em que ele acha que vai ser preso, estava passando com materiais proibidos, mas nada acontece.
OSWALDO:
É, ele estava imprimindo materiais para fabricação de explosivos durante a noite para distribuir com uma DKW. Foi o que a gente fez. Aí, no dia seguinte, à tarde, ele passa com a DKW por um local onde tem um pelotão da PM. Ele para, mas não tinha mais nada disso lá: eles dão uma olhada nas coisas, ele se disfarça de cidadão de bem, mas poderia ter sido devidamente esfrangalhado ali mesmo. Não foi.
FERNANDO:
Voltando ao Diário de bordo. A gente não falou da recepção dele. Como foi?
OSWALDO:
Curiosamente, até vendeu bem: 1.500 exemplares. A crítica foi muito positiva, inclusive a crítica do Leo Gilson [Ribeiro] no Suplemento me tocou. Ele diz: “é um livro raro, de espinha vertebral ética e humana”.
FERNANDO:
Seguindo a ordem cronológica, agora passaríamos para A luz do dia. De que ano é?
OSWALDO:
Dois anos depois do Diário de bordo. É de 1975.
FERNANDO:
Nesse livro há um retorno ao mundo rural. Passa-se em grande parte numa fazenda…
OSWALDO:
Aí o personagem é irmão do dono de uma fazenda e, ao mesmo tempo, é um personagem como o professor do Diário de bordo. Alberto, se não me engano. Uma coisa que chama a atenção é que, lá pelas tantas, o Alberto manda-se para a França. Era o jeito, né? E o Alberto estava ferrado. Uma moça lá do Rio, do Jornal do Brasil ou algo assim, fez a crítica mais babaca que já vi até hoje. Ela disse que para mim Paris é uma festa, e que o Alberto estava feliz, sei lá mais o quê. Tá feliz nada, o cara está fodido e bebe pra caralho. Ele está exilado e já foi sabendo que dava pra voltar. Quando ele volta, encontra com a fulana, Sonia, hiper drogada etc., que tinha 19 anos. Ele se encanta pela Sonia, que desliza por cima das coisas. E tem toda aquela noite, que é o primeiro capítulo, quando ele sai à procura dela. Na verdade, nunca há um encontro. Ela aparece e desaparece. Por outro lado, na tal fazenda, ele é tido como fazendeiro. Como tal, o delegado dá uma arma a ele e o livro mais ou menos termina dizendo: só que ele não sabia que poderia ser o primeiro a ser morto nos seus porões. Mas tem todo um universo rural no meio. Tem também menções a um trecho da Bachiana nº 6, de Villa-Lobos, tem visões do campo, o pessoal voltando do campo… e lá ele convive também com a amiga, cujo nome agora eu não lembro, que está preparando uma tese baseada em grande parte no livro da Maria Silvia [de Carvalho Franco], Homens livres [na ordem escravocrata]. Quando saiu a tese me deram um xerox dizendo que era baseado na Crítica [da razão dialética], que tinha acabado de sair… Não é. Mas, agora, é um trabalho excelente, de levantamento no Vale do Paraíba, particularmente em Guará, da situação do chamado homem livre, que é o homem que não é escravo, mas é dependente. O trechinho transcrito do livro é: as situações constritivas que levam à violência. O universo da violência que predomina lá. Houve inclusive pessoas que disseram: por que você procurou o livro da Maria Silvia? Ué… porque o livro da Maria Silvia é que cuida disso.
FERNANDO:
É um livro importante para um monte de gente.
OSWALDO:
Importantíssimo. Acho muito bom.
FERNANDO:
Bem, a essa altura talvez pudéssemos falar que já há uma espécie de adensamento desse universo seu: desde o Dardará, há um indivíduo, digamos, que está sempre fora do lugar, ele é proprietário e não é proprietário…
OSWALDO:
Na verdade ele é tanto quanto o irmão, só que ele não pratica a propriedade. Ele não é um fazendeiro, mas vive também naquele ambiente rural e em Paris ao mesmo tempo.
FERNANDO:
É um fazendeiro meio intelectual, né?
OSWALDO:
É.
FERNANDO:
A gente está indo por ordem e, como eu disse, parece-me que as coisas vão ficando mais densas: tudo isso vai desembocar no confinamento do Repertório. Opus 5? Mas antes tem o Alcoólatra com Ovo, de que já falamos um pouquinho.
OSWALDO:
É curtinho, né? Eu chamei o Repertório de Opus 5, porque eu supus o Alcoólatra como opus 4. Aí, de novo, é a história da sacaneação, da apropriação… E o que está por trás? É a grande indústria, a grande indústria que já tinha se implantado no Vale do Paraíba, que vinha se implantado cada vez mais. Aliás, o inicinho é assim: “Segunda-feira de manhã fui de São Paulo a Alcantis pela estrada entupida de fábricas, trevos de acesso às cidades e cartazes que anunciavam produtos inúteis para encontrar o Souza às oito e meia da manhã como combinado. Anos atrás a mesma estrada – que já tinha duas pistas – ainda percorria alguns pastos e plantações. As cidades eram menos cretinas, não havia ainda o paliteiro de edifícios que nelas cresceu. O dinheiro das fábricas com outdoors também não se mostrava tão insolente…”
FERNANDO:
No Alcoólatra com Ovo tem um outro elemento, que é o cinismo. O engenheiro, que é a voz principal da novela, um cara que fala muito, podemos dizer que se trata de um cínico?
OSWALDO:
O cara que fala muito é um picareta. Basta ver a desculpa que ele dá no final para o que estava fazendo: é porque ele quer ser bonzinho com Seu Eustáquio, que é o velho da fazenda, que vai ficar muito feliz com o dinheiro que vai ganhar com a desapropriação. Desapropriação que havia mesmo, havia indústria, coisas assim, que eram áreas de segurança nacional. Então, quisesse ou não quisesse, eles entravam. Se você fizesse um acordo, pagavam o acordo, se não fizesse… Era corrente, aconteceu comigo, com a Light para passar uma linha para alimentar a fábrica da Ericsson que era do outro lado da estrada.
FERNANDO:
Nesse período que vai de Dardará a Alcoólatra com Ovo, você acha que seu trabalho de escrita continua marcado pelas mesmas referências ou tem alguma transformação brusca, alguma mudança no modo como você pensa a literatura?
OSWALDO:
Não, transformação brusca não há. Obviamente, há uma transformação progressiva, mas nada tão incisivo. Por exemplo, eu falei em nouveau roman. Nouveau roman, na verdade, desde o início é nouveau roman aclimatado, porque embora ele ofereça o grande recurso da descrição, da descrição como narração, só pra sacanear o Lukács, com aquela besteirada de narrar ou descrever. No nouveau roman, se você for pensar no Robbe-Grillet ou algo assim, pode ser só a descrição e se for pensar no Claude Simon, não. Para mim, foi sempre um instrumento para narrar, a descrição servindo a narração.
FERNANDO:
Voltando um pouco no tempo, é curioso como essa questão já aparece num ensaio seu de 1963, A linguagem do desenraizamento, que saiu no “Suplemento Literário” do Estadão [21/09/1963].
OSWALDO:
Deixe eu só acrescentar antes que eu me esqueça: algo fundamental, para mim, é a questão da poesia. Na poesia há o poeta máximo que é o Saint-John Perse. O finalzinho de A linguagem do desenraizamento é só para citar Saint-John Perse: “Sintaxe de l’éclair! Ô pur langage de l’exil !” A descoberta de Saint-John Perse foi bem antes também, só que aí sim, houve um aprofundamento. Cada dia eu me aprofundo mais na obra dele e me convenço de que provavelmente é o maior poeta do século passado, ganha de longe de todo mundo, sem dúvida. E sempre com a presença muito marcada do mar, que para mim estava sempre presente na minha infância lá em São Vicente. Você pode descobrir também no Cemitério marinho do Valéry: la mer, la mer, toujours recommencée! Mas isso já extrapola e vai muito mais longe. O trabalho [A linguagem do desenraizamento] não é sobre ele [Saint-John Perse], ele só é mencionado no final.
FERNANDO:
Esse texto está em continuidade com seus outros trabalhos sobre Camus, certo?
OSWALDO:
Está.
FERNANDO:
Você pode me corrigir se eu estiver fazendo associações indevidas, mas me parece que nesse ensaio há passagens que fazem pensar nos seus narradores. De alguma forma, guardadas as diferenças óbvias de espaço e tempo, você também tem uma espécie de linguagem do desenraizamento, não? Além disso, nesse ensaio aparece bastante o Bachelard, que você retoma num texto recente, “Comunhão”, que é parte de seu último trabalho.
OSWALDO:
Sem dúvida. Se você pensar em L’air et les songes, por exemplo, o livro sobre a água e os dois sobre a terra. Todo o trabalho dele e, inclusive, aquilo de que ele lança mão pra alimentar o trabalho dele, tem muito a ver com isso.
FERNANDO:
Voltando. Seja na relação com a “linguagem do desenraizamento”, que remete a escritores dos anos 1930, 1940, seja na relação com o nouveau roman, haveria um aproveitamento das técnicas descritivas, mas com outros propósitos. É isso?
OSWALDO:
Totalmente. Há um aproveitamento da técnica descritiva. Neles [os autores do nouveau roman] eu não sei se há algum proposito além de apenas utilizar a técnica narrativa, nem narrativa, descritiva.
FERNANDO:
Bom, então a gente chegou aqui ao fim da ditadura militar, o Alcoólatra com Ovo é quase no fim da ditadura. Qual ano exatamente?
OSWALDO:
O Alcoólatra é de setenta e poucos, 1975 e 1976. Saiu na revista Novos Estudos Cebrap em 1989, mas já estava pronto há muito tempo. Antes de prosseguir, apenas um parêntese. Eu não falaria em ditadura militar, falaria em ditadura militar e civil. Você pega os militares, você pega Sebastião Camargo, você pega o Bradesco, você pega o Boilesen e por aí vai. Quer dizer, houve um conluio, foram as duas coisas juntas. Pena que o Ustra morreu agora, coitadinho, um pústula… ele não poderia ter morrido, pelo menos não tão fácil assim.
FERNANDO:
Já se vão 58 minutos de conversa…
OSWALDO:
Falando em tempo, tem coisinhas jornalísticas, bobagem etc., mas tem um ensaio que realmente é importante, sobre Lima Barreto. A ideia era pegar a obra inteira dele, mas eu só peguei o Isaías Caminha. O trabalho eu acho que ficou muito bom. O Lima Barreto foi um dos primeiros, das primeiras leituras. E aí foi a obra dele inteirinha, por volta de 1958 também.
FERNANDO:
Onde saiu esse ensaio?
OSWALDO:
Saiu na Revista Almanaque [nº4, 1975].
FERNANDO:
Você publicava na Almanaque?
OSWALDO:
Saiu só um trabalho, que foi esse. Era do Bento e da Walnice [Nogueira Galvão].
FERNANDO:
Seu texto se chama A mão e a enxada. Você nunca quis virar crítico acadêmico? Nunca quis fazer tese?
OSWALDO:
Não, não me ocorreu. Aí me ocorreu desenvolver tudo, seria toda a obra dele [de Lima Barreto], mas dá um trabalhão, né? Entre ficcionista e crítico, você, mais ou menos, teria que fazer uma certa escolha, né? Um dos dois lados teria que predominar. E a exatidão da crítica acadêmica é muito chata e trabalhosa, para mim não recompensava muito.
FERNANDO:
Você lê critica acadêmica? Aliás, do que você gosta na crítica brasileira?
OSWALDO:
Se eu disser Candido, estou repetindo o que todo mundo diz. Do Roberto, A sereia e o desconfiado, o primeiro livro dele. Do Bento, A sereia desmistificada, uma beleza de ensaio… saiu naquela revista Teoria e Prática. São só dois números. Tem algumas coisas boas, mas tem muitas coisas sobre política… literatura, literatura mesmo, lembro mais o trabalho do Bento. Eu era muito amigo do Bento, apesar de ele ser palmeirense. Ele entendia muito de futebol. Ele tinha jogos de futebol de botões, tinha os pré-socráticos, Sócrates, era uma coisa maluca. Eu ia na casa dele, que era perto de casa, na Higienópolis, e às vezes a gente ficava jogando… Mas tem a filosofia, Bergson etc., que pra mim é grego. Pior do que Bergson, só Kant… aí não dá! (Risos)
FERNANDO:
Voltando ao nosso roteiro, já estamos em Repertório. Opus 5.
OSWALDO:
O Opus 5 foi mais um desencanto. Quer dizer, o pessoal não se encantou com o livro, porque era um desmancha prazeres… Estava todo mundo eufórico com aquela coisa de anistia, demarcação de terras indígenas etc. E eu via que aquilo tudo era uma armação, era vazia.
FERNANDO:
O livro é de 1982.
OSWALDO:
O que havia mesmo, e é o que predomina, embora só conste entre as Dramatis Personae e numa referência ou outra, são os “figurantes”. Você nota que o arquiteto, o intelectual, convive com as duas jornalistas, sempre assim, acossados pelo medo. Pode ser o quê? Um ladrão? Na verdade, são os “figurantes”. Há apenas uma breve referência a eles, que é quando ele [o arquiteto] vai pegar a moça no jornal. São pivetes, prostitutas, travestis e, à noite na casa dele, o vigia noturno, que vira a noite e fica bocejando lá fora. Aí, voltando ao nosso amigo Lukács, só que dessa vez concordando com ele: naquele ensaio sobre o Doutor Fausto ele fala sobre o grande mundo e o pequeno mundo. Os três personagens vivem no pequeno mundo, ao passo que o resto é o grande mundo, que está lá fora, e que surge assim como uma ameaça muito velada.
Um ponto que é importante no Repertório, é a questão formal. Modestamente, eu acho que está muito bem escrito. Quem inclusive elogiou muito foi o Roberto. De novo, está presente um pouco de escola do olhar e todo aquele repertório de coisas eruditas, que vão de artes plásticas à música, literatura, de filosofia entra o Foucault com a História da loucura… Esse universo de erudição, é erudição acessível, não é erudição bloqueada, e me parece acessível de uma maneira tranquila, sem choque. Se você pega a sequência musical, por exemplo, não me lembro com quem começa, mas acaba dando na Nona Sinfonia do Beethoven, entra a Sinfonia fantástica do Berlioz; com letra, tem até samba paulista; tem muita coisa que se fazia em música naquela época. Vai por aí. Acho que se encaixou bem. E a outra coisa é que parece bem narrado, a narração me parece bem feita.
FERNANDO:
Nesse livro, além de ser o primeiro em que você passa para a terceira pessoa, há também, por assim dizer, uma moldura muito clara: tudo se passa no espaço estreito da casa do arquiteto durante uma noite. Nos outros livros há um espraiamento maior no espaço e, nesse, há um confinamento e uma brevidade: a noite passa, a noite acaba e acaba o livro.
OSWALDO:
Acaba o livro e deixa no ar uma dúvida: houve ou não houve alguma coisa? Isso não interessa. O que interessa é que o que houve está disseminado antes.
FERNANDO:
Quer dizer, por um lado, há os figurantes, esses marginais em sentido amplo; por outro, tomados por um medo difuso, esses caras presos dentro da casa do arquiteto, que é vista pelo próprio arquiteto como uma obra de arte.
OSWALDO:
Exato. Desde o início, quando ele descreve as portas de vidro. Que me perdoem meus amigos arquitetos, esse tique de arquiteto é absolutamente insuportável!
FERNANDO:
Quer dizer, esses marginais começam a aparecer no seu trabalho…
OSWALDO:
Ele [o arquiteto] tem medo, na hora quando vai pegar a moça no jornal, de que algo aconteça do jornal até o carro, tem medo dentro da casa, há sempre um temor não definido. Um temor, exatamente, do pequeno mundo em relação ao grande mundo, que é o que está lá fora.
FERNANDO:
Então, antes havia o universo rural, os camponeses. Agora não tem nada do mundo rural etc., agora é só cidade. Além disso, eu tenho a impressão, lendo o seu trabalho, de que esses figurantes vão ficar cada vez mais próximos, depois desse Repertório, nos seus outros textos, até chegar em :Espelho Esquerdo, onde há inclusive uma entrevista com pessoas que moram na rua.
OSWALDO:
Sim.
FERNANDO:
Mas por que você julga que o livro foi um desencanto, um banho de água fria?
OSWALDO:
Porque o pessoal estava animado, aí vem um cara desanimar. Você não tem que animar nada, não está acontecendo porra nenhuma, continua tudo igual, não muda nada não.
FERNANDO:
Mas isso não é dito de modo explícito no livro.
OSWALDO:
Não, de jeito nenhum, isso aconteceu na recepção, por alguns, que não chegaram nem a dizer, mas que eu notei. Estava todo mundo batendo palma para a grande alvorada, mas alvorada não existia. N’O ovo filosófico, que ficou inédito, aí isso aparece de maneira mais aguda, mais explicitada.
FERNANDO:
Por que ficou inédito?
OSWALDO:
Eu acho que precisaria ser melhorado. Mas não valeria a pena dar importância excessiva aos fatos históricos que não aconteceram. A não ser coisas mais ou menos pontuais como Ambuyaembo, de que já falamos.
FERNANDO:
Bom, o Repertório é de 1982. Para o próximo livro, Mocó, há um salto temporal grande: ele saiu em 2001. Antes havia uma certa periodicidade, você estava publicando de três em três anos. Aí vem esse salto…
OSWALDO:
A coisa se complica um pouco. Esse salto é decorrência do seguinte: o que passou a predominar entre os meus interesses passou a ser a questão da subjetividade. Já é uma mudança, né? E, através dela, diversas coisas, quer dizer: subjetividade, transgressão, sujeira… Uma mudança para o universo da subjetividade, embora da subjetividade como transgressão. Estou usando a palavra subjetividade pois é a que me ocorre. Eu não saberia usar a palavra transcendência.
FERNANDO:
É uma mudança de acento?
OSWALDO:
É uma mudança de interesse à procura de uma mudança de acento. Aí eu acabei escrevendo uns três maços, que dariam livros — um seria O novo Carlos Magno, que tem a ver com o universo rural; outro, Saber os tempos, fazer os tempos; outro ainda, Sessenta e Setenta; e um reiterado esforço num negócio que iria se chamar Sujeira. Nenhum foi satisfatório, nenhum deu certo. E foram devidamente destruídos por mim.
FERNANDO:
Você não tem nenhum material?
OSWALDO:
Se procurar, talvez ache, mas tenho impressão que já fragmentei tudo. Então seriam mais ou menos quatro, que durante um bom tempo eu fiquei martelando, martelando e não saia nada. Aí é que veio o Kierkegaard. Eu ia para o litoral, no Guarujá, escolhi coisas para ler, peguei a Minima Moralia e disse: putz, isso vai me encher o saco! Por acaso, acho que estava perto, havia o Kierkegaard. Foi uma descoberta, eu não conhecia aquilo suficientemente. Descoberto, aí é que saiu o Soren, que foi escrito diversas vezes, embora curto. O Soren eu acho que deu certo, falando especificamente dessa história. Porque aí você tem características do momento, da marginalidade em que ele está, e da subjetividade, da transgressão etc., que me parece bem montado. Não creio que seja indiscrição minha dizer que, espontaneamente, sem que eu tenha perguntado, uma noite em casa a Otília [Arantes] disse que tinha gostado muito, que achava que eu tinha conseguido com isso algo melhor, agora eu não me lembro de quem, de alguma coisa lá em cima. Pra completar o livro vieram as outras duas histórias. O Edgar, um psicanalista num quadro depressivo, onde entra novamente a questão da subjetividade; e a técnica, através do videomaker Alex; entram características do tempo… Mas o fundamental, sem dúvida alguma, é o Soren. Eu acho que realmente o Mocó deu certo, aí eu consegui o que estava querendo. O livro saiu depois de várias tentativas; é curtinho, mas resultou de muito trabalho: escreve, reescreve, escreve, reescreve.
FERNANDO:
Depois de Mocó, também houve um intervalo longo para, agora, chegarmos ao seu último livro: Espelho esquerdo (Nankin, 2016). Apesar de ser um livro novo, com coisas inéditas, você recupera muita coisa que é significativa de sua trajetória, desde A Terra e o Sangue. Você nunca tinha publicado um livro de narrativas curtas. Qual é a ideia? Por que você resolveu fazer o Espelho?
OSWALDO:
O subtítulo do livro é: “Narrações, técnica mista”. Me ocorreu que eu tinha material que daria um livro, desde que devidamente juntado, articulado. Quer dizer, o livro resulta de um trabalho de montagem. E essa montagem teve duas fases. A primeira não era essa sequência, eram apenas trechos de narrativas. De repente me deu um click: pareceu-me que havia uma linha de continuidade, justamente naquilo que você fala [no “Posfácio”]: do resvalar o mundo, do distanciamento do mundo, no início e, no final, o oposto. Quer dizer, no início seria apenas o resvalar de Sonia e no final já ocorre uma integração, uma comunhão, para empregar de novo o termo, com a “ralé”.
Indo nessa linha, o universo da primeira narração tem a ver exatamente com isso; em seguida, o Ambuyaembo, como já te expliquei, parte daquele momento de O ovo filosófico; aí entra Alcoólatra com Ovo, sobre o qual já conversamos; em seguida vem “Alcantis: topografia”, um trechinho que consta no primeiro e não publicado A terra e o sangue. Aperfeiçoei a expressão para caracterizar a industrialização de ponta que ocorre ali em Alcantis para, com isso, vincular ao que vem depois, que é De Motu Corporum. Esse texto obviamente me deu um trabalhão, porque entram astrofísica, teoria dos tubos, teoria das cordas etc., como a base para o desempenho do garoto, cujo nome não aparece, mas é central pra isso: é aquela sequência em que ele procura reproduzir, rabiscando, alguma coisa.
Em seguida, A obra de Alex, que é o inicinho do segundo texto de Mocó, e que é a produção de um vídeo comercial pela produtora do Alexandre, que aí aparece como Alex. Na sequência, vem Comunhão, que já estava redigido como o capítulo 2º ou 3º de Daivas: é exatamente o menino de branco na praia atraído pela sujeira, a sujeira que está no fundo da caçamba da pick-up com água do mar etc., e o filho do pescador está ali. Ele comunga, portanto, com a sujeira. Como ele faz isso ou é levado a isso? Na hora em que, voltando para a praia de São Vicente, ele comunga a ostra. Isso aí é o fundamental, é o núcleo de certa maneira do que vai acontecer depois no Daivas (onde em seguida vem a “danação”).
Depois vem a Fênix, sobre a qual você mesmo citou o Marcel Mauss, que já é o “contágio” com a (sempre entre aspas) “ralé”, através de gravações que de fato foram feitas com moradores de rua, mais ou menos “aperfeiçoadas”, até um pouco censuradas, pois eu tive que mudar os nomes das pessoas, o que eles pediam. Dessa Fênix aparece a tal tatuagem da fênix com a qual se encerra o “contágio”. Mas aí eu achei que não era suficiente e resolvi ir um pouco mais longe escrevendo Viés, que é curto. Nesse caso o contagio vai bem mais longe. Lembra que o personagem inclusive foge de uma suposta troia? Ele vai para a casa do Acasinho, na casa do Acasinho, no fim a gente sabe que a troia não foi ali, então ele volta, isso tudo em volta da favela, claro, aí ele volta pra onde estava, e consuma o contágio, que é feito realmente, factualmente e, como você diz, é a hora em que o narrador se transforma também em personagem. E a coisa se fecha.
Quer dizer, diria que há um percurso do não contato ao contato com o mundo, desse não contato relativo que é o do Alberto com a Sonia ? é uma recusa passiva, a dela ? e no final não, no final o contágio é sem recusa, é um contágio mesmo. Basicamente, eu acho que a linha seria essa.