Antonio Candido: Heranças, herdeiros¹

Leopoldo Waizbort
Ensaio

Leopoldo Waizbort

 

Situações de consagração, como homenagens por ocasião da morte, necrólogios, boletins especiais etc., servem também, ao sociólogo, para evidenciar as dinâmicas do consagrado e seus consagradores, e gostaria de destacar um aspecto dessa dinâmica, que envolve a herança e os herdeiros. Poderia ser uma tentativa de objetivação, para falar na linguagem do hegemon.

Já há muito corre uma luta pela herança e pela herança legítima de Antonio Candido, que ocasionalmente deu até margem ao bom humor daquele que a lega ou legaria. Mas agora a luta pela herança, e pela legitimidade da herança, entra em nova fase. Convido a todos a acompanhar com atenção e curiosidade os desenvolvimentos futuros.

Por ora, observando na mídia o noticiário, necrológios e homenagens por ocasião da morte de AC, embora de modo amador, assistemático e incompleto, pude perceber como diversas vozes procuraram situar-se junto ao homenageado, mostrando aquelas duas principais modalidades de proximidade que poderiam legitimar uma filiação e, consequentemente, uma herança: a pessoal e a cognitiva. Relatos de experiências pessoais com o falecido, afirmações da potência de seus escritos: ambas as modalidades assegurariam aos herdeiros proximidade e legitimidade. As pretensões de legitimidade erguem-se sobre essas duas modalidades de conhecimentos.

Ouviram-se as vozes de alguns que já há muito situam-se nas proximidades, de alguns que já eram, mesmo antes da morte, vistos como filhos ou herdeiros — não necessariamente pelo dono da herança, discreto que era, mas pela dinâmica do jogo —, de outros, que se situavam em graus variados de proximidade, e mesmo outros, sabidamente distantes, e até vozes outrora mais hostis ao programa cognitivo, como convém à situação, entoaram discursos louvatórios e baixaram o tom da reprovação ou discordância cognitiva.

No momento de consagração mortuária, a unanimidade triunfa absoluta. O que significa, também, que o número de vozes que se aproximam se eleva, e a luta pelas posições mais próximas, ou melhor, pela escala de aproximação e da consequente pretensão de legitimação que se pode daí extrair, aumenta.

Ouvimos vozes até então jamais ouvidas, reivindicando experiências e proximidade. Ouvimos o clamor de vozes que se sentiram esquecidas e que reivindicavam vez para sua voz. Ouvimos as vozes que se esperava ouvir, que já tinham seu direito de voz passado em cartório.

Muitas vozes, falando em uníssono naquele momento.

Mas, ao invés de ouvirmos aquelas vozes, ouçamos uma outra, a do hegemon; ele cita Confúcio: “Que o soberano aja como soberano, o sujeito como sujeito, o pai como pai, o filho como filho.” E, a seguir, ouvimos a sua própria voz: “Entregando-se de corpo e alma à sua função e, através dela, à corporação que a ele confiou-a — universitas, collegium, societas, consortium, como diziam os canonistas — o herdeiro legítimo, o funcionário, o dignatário, contribui para assegurar a eternidade da função que preexiste e sobreviverá a ele — dignitas non moritur — e do corpo místico que encarna, e do qual participa, participando ao mesmo tempo de sua eternidade.”[i]

Pouco mais haveria a se dizer do herdeiro, a não ser descrever concretamente, e caso a caso, como as coisas se desenrolam. Esse é, aliás, o programa do hegemon, muito bem formulado pelo próprio auctor, talvez ele mesmo um auctor auctorum, que novamente cito: “seria necessário […] ter-se um conhecimento […] dessas duas séries causais parcialmente independentes, que são, de um lado, as condições sociais de produção dos protagonistas, ou, mais precisamente, de suas disposições duráveis, e, de outro, a lógica específica de cada um dos campos de concorrência aos quais vinculam suas disposições.”[ii]

Não é o caso de desenvolver esse programa agora, e estou longe de possuir competência para tanto, mas creio valer a pena deixá-lo enunciado, inclusive com os latinismos divertidos do auctor auctorum, prova de domínio cognitivo a inibir questionamentos da hegemonia, ou ao menos do brilho.

Bem diferente, aliás, dos enunciados de Antonio Candido, cuja prosa, já há muito, foi reconhecida em sua simplicidade, modéstia, clareza e penetração. Brilho, por  outras palavras.

 

Na ocasião da morte, fui solicitado a responder a algumas questões por um colega que estava a escrever uma “reportagem sobre a obra de AC”; uma delas indagava a respeito dos “discípulos ou continuadores de suas reflexões”. Respondi o seguinte:

 

A reivindicação da herança é disputada por vários, e cada um pode encontrar, em um autor tão rico, algo ou muito com o que se alimentar. Que tantos, tão distintos, possam querer herdar, indica que foram capazes de ler e encontrar, nos vários escritos de AC, estímulo, inspiração e lição. O que revela que se trata de rio caudaloso, que irriga muita terra variada. Minhas idiossincrasias pessoais levam-me a crer que mais herda ou herdará, aqueles que se prenderem menos à letra, e mais ao espírito. Vemos recorrentemente a transformação do esforço de análise em fórmula; assim cristalizado, ele perde a vitalidade e penetração que possuiu nas mãos de AC. Continua e continuará o seu trabalho aqueles que, com o mesmo amor que ele enunciou, possam também criar os seus modos próprios de análise, inventar seus caminhos e, assim, revelar mais e mais do mundo confuso em que vivemos, e do humano que somos.

 

Leopoldo Waizbort é professor titular no Departamento de Sociologia da USP e pesquisador do CNPq.

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¹ Texto apresentado no evento “Antonio Candido: sociologia e crítica literária”, FFLCH-USP, 26/06/2017.

[i]  Bourdieu, Pierre. Lições da aula. 2a. ed., São Paulo, Ática, 2001, pp. 55-56.

[ii] Idem, p. 42.