A espoliação urbana e o campo dos estudos urbanos no Brasil¹

Eduardo Marques
Resenha

Eduardo Marques

 

É preciso iniciar dizendo que, na minha opinião, A espoliação urbana (Paz e Terra, 1979) marca a origem da sociologia urbana brasileira propriamente dita. Evidentemente, houve vários estudos anteriores sobre processos e fenômenos sociais no urbano, inclusive os antecedentes diretos do livro – São Paulo: crescimento e pobreza (Ed. Loyola, 1975) e Capitalismo e marginalidade na América Latina (Paz e Terra, 1975) – mas não se trataram de estudos propriamente do urbano, no sentido de ter foco nos processos associados à cidade e à sua produção. De forma similar, estavam sendo desenvolvidos paralelamente no Rio de Janeiro estudos sobre temas correlatos e com abordagem próxima, em especial por Janice Perlman e Luís Antônio Machado da Silva, embora cada um com suas especificidades.

A espoliação urbana representou o início da sociologia urbana entre nós por realizar a urbanização dos argumentos anteriores sobre marginalidade. Em São Paulo: crescimento e pobreza já se colocava uma forte denúncia ao caráter excludente de nossa urbanização sob o milagre econômico do regime militar. Entretanto, embora aparecesse como elemento central, o urbano, não era lócus de processos específicos, exceto pelo capítulo da “Lógica da desordem”, não por acaso escrito pelo próprio Lúcio como um prelúdio do que se veria quatro anos depois em A espoliação urbana. Esse livro trouxe os processos de produção do espaço, sobretudo periférico, para o centro das análises da peculiaridade de nosso capitalismo, conectando de forma elegante os processos gerais de produção das desigualdades sociais e econômicas com as dinâmicas de produção da cidade.

Vale dizer que diferentemente do que por vezes se considera, o livro nasceu profundamente enraizado nos debates sobre desenvolvimento e marginalidade, e apenas lateralmente influenciado pela literatura urbana estruturalista francesa do período. A principal referência teórica, nesse sentido, era a teoria da dependência e uma certa crítica às teorias do desenvolvimento, às interpretações etapistas e baseadas na existência inexorável de convergências históricas rumo ao desenvolvimento, sob influência tanto de Fernando Henrique Cardoso (que prefacia o livro) quanto de Chico de Oliveira. Segundo essa interpretação crítica, o elemento definidor de nosso capitalismo periférico seria o trabalho informal, sendo as dinâmicas do exército industrial de reserva a chave para a compreensão tanto de nossa situação (social) quanto de nossa posição (no sistema internacional).

A espoliação abraçou essa interpretação, mas trouxe também para o centro do argumento o regime político – o contexto da ditadura militar –,

que permitiria o elevadíssimo grau de exploração e as péssimas condições de vida em nossas metrópoles. O contexto autoritário explicaria ainda o baixo nível de contestação política entre nós, produto da repressão, e não de um suposto caráter ‘amorfo da nossa sociedade civil’, como discutido por Lúcio em seu primeiro capítulo.

A espoliação era definida como “somatória de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade dos serviços de consumo coletivos que se apresentam como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapidação que se realiza no âmbito das relações de trabalho” (p. 59). O Estado seria aí fundamental, mesmo que pela sua ausência na provisão de bens, serviços e equipamentos. Abriu-se a partir daí uma agenda de pesquisa urbana sobre a produção do espaço que ocuparia as duas décadas seguintes, focando loteamentos, autoconstrução (cujo caráter gerou intensa polêmica com pesquisadores oriundos da arquitetura), habitação, favelas e segregação. Por outro lado, as intepretações dos movimentos sociais e das “necessidades sociais” seriam excessivamente estruturalistas e associadas às “necessidades da acumulação”, como o próprio Lúcio admitiria mais tarde no livro Escritos urbanos (Ed. 34, 2000).

É fundamental levar em conta que nesse mesmo momento estava em construção um debate acadêmico internacional sobre as relações entre urbanização, capitalismo (avançado, originalmente) e Estado, embora visto de fora, destacando seus constrangimentos e consequências e deixando como lacuna interpretativa seus processos internos. Constituiu-se neste momento uma rede de pesquisadores críticos sobre a urbanização e suas cidades, organizados em torno da recriação do comitê de sociologia urbana da Associação Internacional de Sociologia (RC21 da ISA), em 1970, e da revista IJURR em 1977, incluindo entre vários outros Manuel Castells, Jean Lojkine, Enzo Mingione, Chris Pickvance, Edmond Preteceilele e Christian Topalov. Essa literatura tinha características fortemente estruturalistas no início dos anos 1970 (como no primeiro Castells), mas se transformou ao longo da década, incorporando versões historicistas do marxismo, assim como alargando o seu espectro teórico.

Tanto a produção estruturalista (poulantziana) quanto a pós estruturalista chegaram juntas e misturadas nos anos 1980, gerando alguma confusão teórica. Adicionalmente, a influência desses autores ocorreu conjuntamente com uma guinada da literatura nacional sob influência de uma certa antropologia urbana em construção, mobilizada para estudar detalhadamente o cotidiano das camadas populares e das periferias – Eunice Durham, Ruth Cardoso, Teresa Caldeira, Bete Bilac, José Magnani (em São Paulo) e Carlos Nelson dos Santos (no Rio de Janeiro). O encontro desses estudos etnográficos com um certo marxismo historicista baseado no conceito de experiência em E. P. Thompson levou ao desenvolvimento de primorosas análises sobre movimentos sociais, como nos trabalhos de Eder Sader e Edson Nunes, que em grande parte equacionaram o encontro dos constrangimentos estruturais com a agência social nos movimentos, superando as análises estruturalistas anteriores baseadas nas contradições urbanas.

Os anos 1980 e 1990 assistiram a importantes transformações do próprio Brasil urbano, seus temas e dilemas – participação política, expansão dos direitos e crescente acesso a serviços, mesmo que com fortes desigualdades (sobretudo por qualidade), ao mesmo tempo que se mantinha a segregação residencial e cresceria intensamente a violência urbana. Desenvolveram-se então novos debates sobre cidadania e direitos, participação social, políticas urbanas, violência urbana e sobre as interações entre Estado e movimentos sociais (agora descentrados da ideia de autonomia). A literatura sobre movimentos sociais e associativismo se deslocou para incorporar mais claramente as múltiplas conexões com o sistema político, e análises mais precisas de estratificação sócio-espacial mostraram as significativas (e crescentes) heterogeneidades das precariedades urbanas e dos espaços periféricos.

Partindo de óticas renovadas pelos debates teóricos e metodológicos contemporâneos, esses deslocamentos revisitam as questões e temas investigados por Lucio Kowarick no livro de 1979, tentando compreender melhor, e a partir daí transformar, as condições de vida e as fortes desigualdades sociais ainda presentes em nossas cidades.

 

Eduardo Marques é professor livre-docente do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisador e vice-diretor do Centro de Estudos da Metrópole (Cepid/Fapesp).

 

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1 O presente texto se baseia em apresentação no debate “A espoliação urbana: impactos e desdobramentos”, evento realizado em 29 de setembro de 2017 como parte do ciclo “Cebrap 50 anos, obras fundamentais”.